da
“Sacrosanctum Concilium”*
Frei
José Ariovaldo da Silva, OFM
A partir do Vaticano II, vamos ter que, neste sentido, passar ainda por um
grande processo de re-evangelização, uma enorme mudança de mentalidade, uma
profunda 'terapia' espiritual de nosso imaginário religioso católico. Sem querer, absolutamente, desmerecer o
ministério ordenado, temos que de certa maneira reverter essa situação.
Para tanto, temos que ver a questão do sacerdócio com um ocular que nos leva a
enxergar bem mais longe, para dentro da mais brilhante estrela a iluminar
permanentemente a vida de cada um(a) de nós...
2. A palavra “sacerdócio”
(que vem do latim: sacerdotium) deriva-se do substantivo latino sacerdos
(sacerdote) que, por sua vez, vem da soma (ajuntamento) de duas outras
palavras: sacer (do
latim: sagrado, segregado, reservado, inviolável, intocável) + dot (do verbo grego dídomi (didwmi): dar, oferecer, entregar,
fazer/realizar uma oferta – faz lembrar dote). Assim, sacerdote seria a
pessoa que oferece à divindade coisas sagradas (= reservadas somente para
Deus), os sacrifícios; também a pessoa que preside as cerimônias de um culto
religioso em que se oferece à divindade as orações, homenagens, sacrifícios.
E “sacerdócio” seria o exercício da função própria de quem é incumbido deste
serviço.
3. Como vimos,
"sacerdócio" liga-se a "sacrifício". Esta palavra também
vem do latim: sacrificium que, por sua vez, também vem da soma
(ajuntamento) de duas outras palavras: sacrum
(do latim: alguma
coisa sagrada, reservada, inviolável, intocável, de que não se pode abrir mão)
+ fácere (do latim: fazer, realizar, operar).
"Sacrifício", portanto, traduzindo literalmente, seria: Algo sagrado,
muito especial, irrenunciável, de que não se pode abrir mão, que a gente tem
que fazer, realizar, a todo custo... Então, para adiantar, como cristãos
poderíamos perguntar: o que será que Deus pede que o ser humano faça, a todo
custo, e disso não dá para abrir mão, pois é próprio de Deus mesmo?...
4. Outra palavra que ocorre muito na
nossa linguagem bíblica e cristã, em torno da qual nós liturgistas também nos
debatemos, é a palavra "culto". Esta palavra também vem do latim, ou
melhor, vem do verbo latino cólere, que significa "cultivar". Daí
vem a palavra "colono", a pessoa que cultiva a terra. O particípio passado de cólere é
"cultus". Daí vem também "cultura": tudo o que o ser humano
cultiva para, em última instância, garantir a vida e a sobrevivência. Falamos
de uma pessoa "culta", a saber, a pessoa que cultiva o saber, o
conhecimento, a ciência. Então a gente aqui poderia perguntar: O que seria
"cultuar" Deus, ou também, prestar culto a Deus?...
5. Disse Deus a Moisés, lá no monte
Sinai, depois que saíram da escravidão do Egto: “Diga aos israelitas o
seguinte: Vocês viram o que fiz aos egípcios, e como carreguei vocês sobre asas
de águia e os trouxe até mim. Agora, se vocês realmente ouvirem minha voz e
guardarem a minha aliança, serão minha propriedade exclusiva dentre todos os
povos. De fato, é minha toda a terra, mas vocês serão para mim um reino de
sacerdotes e uma nação santa. Diga isso para os israelitas” (cf. Ex 19,3-6).
6. Como se vê, todo o povo de Israel é chamado a ser “povo sacerdotal”. E
este sacerdócio consiste no seguinte: Ouvir voz de Deus (isto é:
realizar e garantir na sociedade, pela vivência do amor, tudo o que Deus mesmo
havia feito em favor do povo, ao libertá-lo da escravidão; 'cultivar' Deus!) e manter-se
fiel à sua aliança (isto é: garantir o mútuo compromisso selado, de viver
este amor “de todo coração e com toda a alma”: 'cultivar' a proposta de Deus!).
Todo o povo é chamado a honrar a Deus, prestar-lhe culto, deste jeito: ouvindo
a sua voz e guardando a sua aliança. Disso não dá para abrir mão, se o povo
quiser ser um povo feliz, realizado, cheio de vida. Isso é sagrado!
7. Para assegurar de certa maneira esta vocação ‘universal’ do povo de Israel,
estabeleceu-se até mesmo um ministério específico, o dos sacerdotes. Suas
principais funções eram o serviço do culto e o serviço da Palavra. No serviço
do culto, sua principal tarefa consistia em oferecer os sacrifícios, sobretudo
imolando animais. Como mediadores entre Javé o seu povo, apresentavam a Deus as
ofertas dos fiéis e transmitiam a estes a bênção divina. Os sacrifícios, como
expressão de reconhecimento e submissão a Javé, eram oferecidos pelo povo e
apresentados pelos sacerdotes. No serviço da Palavra, sua principal função era
transmitir e assegurar a tradição, codificada nos relatos que lembram as
grandes recordações do passado e da Lei. Dessa Palavra é que os sacerdotes são
ministros, como Aarão em Ex 4,14-16 . Nesta linha, são eles que também garantem a
redação escrita da Lei nos diversos códigos: o Deuteronônio, a Lei da santidade
(Lv 17-26), a Torá (livro da Lei) de Ezequiel (40-48), a legislação sacerdotal
(Ez, Lv, Nr), a compilação final do Pentateuco (Cf. Esd 7,14-26; Ne 8). Por
isso que o sacerdote aparece como o homem do conhecimento (Os 4,6; Ml 2,6s.;
Eclo 45,17): é o mediador da Palavra de Deus, na forma tradicional de história
e de códigos. Nos últimos séculos do judaísmo, com a multiplicação das
sinagogas, o sacerdócio se concentra em suas tarefas rituais. Ao mesmo tempo
cresce a autoridade dos escribas leigos que, vinculados em geral à seita dos
fariseus, serão no tempo de Jesus os principais mestres em Israel.
8. Porém, a Palavra de Deus, adaptada às diversas circunstâncias da vida, chega
ao povo de Israel também por um outro caminho: o dos profetas. Movidos pelo
Espírito, eles têm a árdua missão de lembrar a vocação primordial de Israel,
que consiste em ouvir a voz de Deus (= obedecer à Palavra) e manter-se fiel à
aliança. Vocação para ser um povo sacerdotal, 'reservado' para Deus, em
primeiro lugar pela vivência da justiça, do amor, da misericórdia. Daí as
ferrenhas críticas que os profetas fazem, em nome de Deus, tanto aos sacerdotes
corrompidos quanto aos sacrifícios e rituais vazios, sem compromisso com o amor
e a justiça (cf. Is 1,10-20; Jr 7,1-23; Am 5,21-25; Mq 6,6-8). Famoso o apelo
de Deus em Os 6,6: “Eu quero o amor e não sacrifícios”. O sentimento íntimo de
agradecimento pelos benefícios recebidos (Sl 49,14.23), ou de arrependimento e
de conversão pelo pecado (cf. também Sl 50,18-19; Os 8,11-12; Am 6,21-25; Dn
3,37-41), é este o sacrifício que agrada a Deus. É por aí que deve ir a vocação
de Israel para ser “povo sacerdotal”!...
9. Jesus reconhece a função dos
sacerdotes, mas enquanto ela estiver a serviço das pessoas. Temos um exemplo no
relato da cura do leproso (cf. Mc 1,40-45; Mt 8,1-4; Lc 5,12-16): Jesus manda o
homem curado apresentar-se aos sacerdotes. Acontece, porém, que Jesus manda o
moço se apresentar, não por pura deferência ao sacerdote em si, mas para ser
‘oficialmente’ reconhecido como curado e poder ser reintegrado na sociedade.
Jesus se serve, pois, da instituição cultual (o ministério sacerdotal) para
resgatar a cidadania ao homem curado da lepra. Como que para dizer: O
verdadeiro sacerdócio é aquele que liberta e salva as pessoas. No fundo, é o
que Jesus mesmo está fazendo, ao mandar o leproso curado se apresentar aos
sacerdotes. Aliás, os evangelhos, quando abordam a figura dos sacerdotes, os
vêem sempre de forma muito crítica (cf. Lc 10,30-37: parábola do bom
samaritano; Lc 1,5-56, fazendo uma comparação entre o sacerdote Zacarias e
Maria!). Sobretudo os sumos sacerdotes, “o clero superior do templo” (J.
Jeremias), nunca aparecem nos evangelhos em sua função cultual, em seu papel de
homens religiosos dotados de ‘eterna santidade’, relacionando-se com Deus.
Aparecem somente como mentores dos grandes sofrimentos que Jesus devia
enfrentar (cf. Mt 16,21; Mc 8,31; Lc 9,22), como homens que tramam a morte de
Jesus (cf. Mc 10,33; 11,18; Mt 20,18; 21,23.45; 26.3.14.47.51.57-59.62-65 par.;
Lc 10,19).
10. Interessante que em nenhum lugar
do NT Jesus é chamado de sacerdote, e muito menos de sumo sacerdote, a não ser
(curiosamente!) na Carta aos Hebreus (Hb 7,23-28; Hb 9,11-12; Hb 10,5-14). Por
estes textos, dá para ver que o “sacerdócio de Jesus” é entendido não em
sentido ritual, mas existencial. A saber, ele não é um 'separado dos demais',
como acontecia tradicionalmente com os sacerdotes, mas se solidariza
radicalmente com todos. A saber, ele mergulha de cabeça no abismo da realidade
humana: Me fizeste um corpo... Ele mesmo, na total obediência ao Pai,
'se deixa sacrificar' até a morte e morte de cruz, até a última gota do seu
sangue. Ele é visto como sacerdote, não colocando em prática ritos sagrados
mas, na radical obediência ao Pai, entregando ('sacrificando') toda a sua vida a
serviço das pessoas, sobretudo em sua morte, para a salvação do ser humano. Sua
ressurreição é a marca definitiva de que este é o culto que mais agradou a
Deus. Assim, Jesus levou à plenitude a vocação primordial do povo de Israel,
anunciada em Ex 19,3-6 e, consequentemente, ficou ab-rogada a instituição
sacerdotal judaica.
11. Em Cristo,
único sacerdote verdadeiro, formando nele um só corpo (cf. 1Cor 12,12-31) pelo
batismo, fomos naturalmente constituídos o novo e verdadeiro “povo sacerdotal”,
como o proclamam a Primeira Carta de Pedro e o Apocalipse de João (1Pd 2,4.5.9;
Ap 1,5b-6; 5,6-10; 20,4-6). Temos outras passagens do NT, onde não aparece
explicitamente a denominação 'sacerdotes' ou 'sacerdócio' para os cristãos, mas
são empregadas aí outras expressões referentes ao sacerdócio, sobretudo no seu
ato mais característico, o sacrifício (Rm 12,1-2; Ef 2,11-14a.18-22; Hb
4,14-16; 10,19-22; 13,15-16). Em outras palavras, participantes do único
sacerdócio de Cristo, como povo sacerdotal, temos um único sacrifício que
realmente agrada a Deus: o sacrifício de Cristo e, em Cristo, toda a nossa vida
cristã solidária com os irmãos e irmãs, na vida e na celebração.
12. Na patrística, isto é, nos escritos cristãos dos primeiros séculos, os textos
bíblicos utilizados para falar do sacerdócio dos cristãos podem ser agrupados
em duas séries: 1) os ligados à vida humana, vivida na linha religiosa de
Jesus, particularmente Jo 4,23 (“os verdadeiros adoradores do Pai”), Rm 15,16 e
Fl 2,17 (a vida apostólica e a conversão a Jesus Cristo como liturgia ou culto
oferecido a Deus), e Rm 12,1 (o culto espiritual da oferta de si mesmo a Deus
qual sacrifício vivo); 2) os textos de 1Pd 2,4-10 e Ap 1,6. 5,10 e 20,6 sobre o
povo cristão assinalado com o sacerdócio real.
13. A
primeira série de textos é usada num contexto apologético dos cristãos contra
judeus e pagãos. Usando estes textos, os cristãos afirmam que “o culto cristão
é diferente, é um novo modo de entender a religião. Esta se entende na
santidade da vida entregue a Deus e não em meros gestos rituais ou ofertas
cultuais independentes da vida. Explicando seu culto como novo modo de entender
o laço ‘religioso’, os cristãos se qualificam como ‘sacerdotes’, bem como os
únicos e verdadeiros sacerdotes de toda a humanidade”. Como escreve Tertuliano: “Esta é a oferenda
espiritual que aboliu todos os antigos sacrifícios... Está escrito: ‘Virá o
momento em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade’
e tais adoradores Ele os procura. Nós somos os verdadeiros adoradores e os
verdadeiros sacerdotes, porque, orando no espírito, no espírito oferecemos
nossa oração a Deus, como hóstia a Ele devida e por Ele aceita. Ele pediu esta
oferta e a esta oferta dirige seu beneplácito”.
14. A
segunda série de textos, relativos ao sacerdócio real (regale sacerdotium),
é aplicada num duplo contexto: de um lado, o sacramental (batismal), atribuindo
o sacerdócio a todos os cristãos, e, de outro, querendo reservar o título de
sacerdócio aos ministérios ordenados. Nos batizados se cumpre a promessa de Ex
19,6, isto é, os cristãos são todos reis e sacerdotes. Não necessitam mais da
mediação de uma instituição sacerdotal, como era antigamente e como é entre os
pagãos, para se aproximarem de Deus. Pelo batismo, todos são consagrados
(reservados para Deus), se aproximam diretamente de Deus. Neste sentido, o
cristão é sacerdote, está marcado por um regale sacerdotium (sacerdócio
real). A antiguidade cristã, por outro lado, aos poucos vai hierarquizando a
diversidade de ministérios existentes para o exercício da vida cristã, com
destaque para os diáconos, presbíteros e bispos. Estes dois últimos
(presbíteros e bispos) na qualidade de chefes das comunidades, foram, pouco a
pouco e, cada vez mais, só eles, sendo qualificados e distinguidos como
sacerdotes.
15. Sobretudo da
Idade Média para cá, quando se falava de sacerdote, normalmente se pensava
exclusivamente nos presbíteros. E isso atravessou praticamente todo o segundo
milênio. Fomos evangelizados com essa compreensão reduzida de sacerdócio,
exaltando de tal maneira o sacerdócio ministerial, que o sacerdócio de todos os
cristãos acabou caindo praticamente no esquecimento, e até nem sendo admitido.
Conseqüentemente, vimos o clero, transformado em casta sacerdotal à imagem dos
sacerdotes do AT e do paganismo, monopolizando toda a Liturgia. E os cristãos,
não se sentindo mais sacerdotes, praticamente deixam de participar ativamente
da Liturgia. Apenas assistem aos cerimoniais realizados pelo ‘profissional do
culto’, o sacerdote.
16. Com o Vaticano II assistimos
finalmente o resgate de uma verdade que havíamos esquecido (perdido!) por mais
de um milênio, a saber, que todos somos o verdadeiro "povo
sacerdotal". Participantes do único sacerdócio de Cristo, pelo batismo,
todos somos sacerdotes e sacerdotisas. A Constituição sobre a Liturgia, o
primeiro documento do Concílio, não traz uma formulação doutrinal explícita
sobre este sacerdócio, pois não era seu objetivo. Ela virá em documento
posterior, a saber, na Constituição Dogmática sobre a Igreja, a “Lumen
Gentium”.
17. No n. 10 da Constituição
Dogmática (dogmática!) sobre a Igreja, vemos finalmente resgatada a compreensão
do sacerdócio universal de todos os cristãos. Vale a pena conferir o que diz o
documento, numa síntese verdadeiramente esplêndida: “Cristo Senhor, Pontífice
tomado dentre os homens (cf. Hb 5,1-5), fez do novo povo ‘um reino e sacerdotes
para Deus Pai’ (Ap 1,6; cf. 5,9-10). Pois os batizados, pela regeneração e
unção do Espírito Santo, são consagrados como casa espiritual e sacerdócio
santo, para que por todas as obras do homem cristão ofereçam sacrifícios
espirituais e anunciem os poderes d’Aquele que das trevas os chamou à sua
admirável luz (cf. 1Pd 2,4-10) . Por isto todos os discípulos de Cristo,
perseverando em oração e louvando juntos a Deus (cf. At 2,42-47), ofereçam-se
como hóstia viva, santa, agradável a Deus (cf. Rm 12,1). Por toda parte dêem
testemunho de Cristo. E aos que o pedirem dêem as razões da sua esperança da
vida eterna (cf. 1Pd 3,15)".
18. Com certeza, foi tendo como pano
de fundo esta verdade, que ela aparece já na Constituição sobre a Liturgia,
antes da definição explícita da doutrina.
Chama a atenção que na
"Sacrosanctum Concilium" a Liturgia vem definida como "exercício
do sacerdócio de Jesus Cristo, no qual... é realizada a santificação do ser
humano, e é exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo,
Cabeça e Membros" (n. 7). Este sacerdócio aparece de alguma maneira,
implicitamente, já nos nn. 5-8: A obra da Salvação, prenunciada por Deus,
realizada em Cristo; esta obra continua na Igreja e se coroa na sua Liturgia.
Este Jesus é o único sacerdote. Afirma-se também que na Liturgia, na qual se
torna presente este Cristo (ibid.), o ser humano é santificado. Quer
dizer: é iniciado e/ou 'confirmado' ('sancionado': do latim sancire-sanctus)
sempre de novo na sua consagração ('reservação' para Deus, da qual não dá para
abrir mão) 'como sacerdote no único sacerdócio de Cristo'.
19. Assim sendo, consequentemente,
na Liturgia, todos os cristãos, consagrados ('sancionados') como "povo
sacerdotal'' (Corpo Místico de Cristo, Cabeça e Membros), realizam o melhor ato
de submissão, reconhecimento e gratidão a Deus por ter-nos feito participantes
de sua própria vida divina.
20. Agora se entende também a
insistência do documento sobre a participação ativa de todo o povo cristão na
Liturgia, como um direito e obrigação: "Deseja ardentemente a Mãe Igreja
que todos os fiéis sejam levados àquela plena, cônscia e ativa participação das
celebrações litúrgicas, que a própria natureza da Liturgia exige (!) e à
qual, por força do batismo, o povo cristão, 'geração escolhida, sacerdócio
régio, gente santa, povo de conquista' (1Pd 2,9; cf. 2,4-5) tem direito e
obrigação" (n. 14; cf. n. 30). Se somos um povo que Deus 'conquistou'
para si (e disso ele não abre mão: consagrado, reservado, santificado, povo
sacerdotal!), e todo este mistério está presente nas celebrações, não resta
senão honrar o direito e dever que nos foi dado de participar de maneira plena,
consciente e ativa do culto público e integral, cujo centro é o
"sacrossanto mistério da eucaristia", não mais "como estranhos
ou mudos espectadores" (n. 48).
21. E como se exerce na prática tal
participação "sacerdotal'? A "Sacrosanctum Concilium" a
especifica nos seguintes termos: a) todos "sejam instruídos pela Palavra
de Deus" (n. 48); b) "ofereçam a vítima sem mancha, não somente pelas
mãos do sacerdote, mas juntamente com ele" (ibid.); d) "que aprendam
a oferecer-se a si próprios (!) e diariamente se aperfeiçoem, pela mediação de
Cristo, unidos com Deus e entre si, para que Deus seja afinal tudo em
todos" (ibid.); e) "que se alimentem à mesa do Senhor e dêem
graças" (ibid.); recomenda-se "vivamente" a perfeita participação
na missa, pela qual os fiéis, após a comunhão do sacerdote presidente, recebem
o Corpo do Senhor do mesmo Sacrifício (n. 55); f) orem em comum:
"restabeleça-se a 'oração comum ou dos fiéis' após o evangelho e a
homilia, sobretudo nos domingos e outras solenidades.
22. Enfim, resta-nos uma última
pergunta: E o "sacerdócio ministerial"? Como fica? Qual o seu caráter
específico? Em que se baseia, por exemplo, a diferença entre o sacerdócio
universal e o sacerdócio ministerial?
Vejamos primeiro o que diz a respeito
o próprio Vaticano II, na Constituição Dogmática sobre a Igreja: "o
sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial... ordenam-se um ao
outro, embora se diferenciem na essência e não apenas em grau. Pois ambos
participam, cada qual a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. O sacerdote
ministerial, pelo poder sagrado de que goza, forma e rege o povo sacerdotal,
realiza o sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece a Deus em nome
de todo o povo. Os fiéis, no entanto, em virtude de seu sacerdócio régio,
concorrem na oblação da Eucaristia e o exercem na recepção dos sacramentos, na
oração e ação de graças, no testemunho de uma vida santa, na abnegação e na
caridade ativa" (LG 10).
23. Diz o Concílio que a diferença
se situa na essência e não apenas em grau. Pois ambos participam, cada qual a
seu modo, do único sacerdócio de Cristo. Note-se que se fala do sacerdócio
(universal ou ministerial), e não das pessoas que o exercem! Assim sendo, a
partir do batismo, todos os membros da Igreja (todos!) são radicalmente iguais.
Os ministros ordenados continuam sendo membros do povo de Deus (neste sentido
permanecem "leigos"). O Vaticano II enfatizou esta doutrina.
Mas como explicar então
especificidade do sacerdócio ministerial (ou ministério ordenado)? Hoje os
teólogos vêem que “a diferença, mais do que de natureza, é funcional: não
principalmente em razão de algumas funções específicas que seriam exclusivas
dos ministros, mas em razão da função global que desempenham no interior do
organismo eclesial”. Neste nível devemos situar a afirmação do Vaticano II,
quando afirma que o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial
diferem "essencialmente e não apenas em grau". A situação dos
ministros no corpo de Igreja é "essencialmente" distinta daquela que
ocupam os leigos, mas isto não significa que gozam de maior "dignidade” ou
que estão "acima" deles.
24. E como fundamentá-la
teologicamente? A raiz teológica pode ser buscada na própria relação
Cristo-Igreja. A saber, o que melhor caracteriza a maneira específica de o
ministro ordenado referir-se a Cristo na Igreja, diferentemente dos demais
cristãos, é o fato de ser consagrado pelo Espírito (e disso Deus também não
abre mão!) para ser "sinal de Cristo cabeça e pastor". "O NT
mostra que Cristo mantém uma dupla relação diante da Igreja, que é seu corpo:
uma relação de interioridade, que vai até a identificação mística -
todos nós somos seus membros; somos Cristo: cf. 1Cor 12,12; At 9,4 - e uma
relação de superioridade e de autoridade expressa em textos como 1Cor 11,3 e
7" (Y. Congar). Esta segunda relação dá origem a uma alteridade: a
alteridade Cristo-Igreja. Situa Cristo "diante da” Igreja. Esta alteridade
é também constitutiva do ser da Igreja. "Significa que Cristo é tudo para
a Igreja. Sem Cristo a Igreja é impensável. Em tudo o que se refere à
existência da Igreja, a iniciativa corresponde inteiramente a Cristo. Ele é a
origem e a fonte da Igreja, não só historicamente, mas também atualmente, de
forma permanente: 'Cristo amou a Igreja e se entregou por ela para consagrá-la'
(Ef 5,25-26): um mistério sempre atual de amor e fidelidade que ilumina
perenemente a Igreja. Queremos dizer isto quando afirmamos que Cristo é a
cabeça da Igreja. As misteriosas relações entre a Cabeça e o Corpo constituem o
núcleo vital, o princípio da vida do organismo eclesial. Todas estas afirmações
configuram um aspecto essencial a identidade da Igreja.
"É importante que a Igreja...
tenha consciência desta dependência sua de Cristo; que se sinta pre-venida pelo
amor de seu Esposo, convocada, reunida, alimentada, salva pela palavra de Deus
- Cristo morto e ressuscitado -; que recorde que não é fonte de si mesma, mas
pura referência ('sacramentum') a Cristo e à sua salvação. Está em jogo a
própria identidade da Igreja".
25.
Ora, para manter-nos conscientes desta realidade do Cristo-cabeça da Igreja,
Cristo quis que ela nos fosse "visualizada" por um sinal. E o
sacerdócio ministerial é este sinal: assim o crê a Igreja Católica. Trata-se do
mesmo sacerdócio universal, mas acrescido de um serviço
"essencialmente" bem específico dado pelo Espírito: o de ser o
"sinal do amor de Cristo por sua Igreja, de sua fidelidade de esposo; é a
visibilização sacramental da 'entrega de si mesmo por ela'; é o símbolo do
mistério da gratuidade de Deus na salvação e da primazia da graça divina....
Recorda a todos que é Cristo como cabeça quem continua, pelo Espírito, reunindo
e mantendo unido e vivo o seu corpo. Em outras palavras, nele se revela à
Igreja a 'auctoritas' (autoridade) de seu Senhor: 'Auctoritas' em seu sentido
etimológico (de 'augere', crescer), 'a autoridade com que Cristo forma,
santifica, rege o seu corpo' (PO 2). O ministério apostólico é sinal e servidor
da alteridade Cristo-Igreja".
Isto significa que o sacerdócio ministerial
é também sinal da dependência da Igreja em relação a Cristo, de sua referência
constante e obrigatória ao Cristo vivo, sem o qual não há Igreja. "Segundo
estas premissas é preciso admitir que, embora continue fazendo parte do povo de
Deus, o ministro ordenado está de alguma forma 'diante' dele (servindo a
alteridade Cristo-Igreja) e 'na frente' dele (tem sua condição de sinal de
Cristo cabeça). Se lhe faltasse este sinal, a Igreja não se reconheceria a si
mesma como 'Igreja de Cristo'".
26. Portanto, o ministro ordenado é
sinal eficaz do mistério que ele representa. Daí que a idéia de
"representação" deve ser tomada aqui em seu sentido forte: como
representante de Cristo cabeça, no exercício de sua função, o ministro torna
visível, presente e atual a ação salvadora de Cristo por sua Igreja.
O Vaticano II quis significar tudo
isso quando afirmou que os ministros da Igreja são "sinais de Cristo
cabeça e pastor" (LG 28; PO 2, 6, 12; AG 39). Note-se que
acrescentou a palavra "pastor" (LG 28 e PO 6). Certamente para evitar o perigo do excessivo
verticalismo que a palavra "cabeça" poderia sugerir.
Portanto, sempre que age como
ministro, não pode deixar de fazê-lo como "sinal de Cristo cabeça e
pastor". Precisamente nisto se resume "o específico" do
ministério apostólico, o que diferencia dos 'sacerdotes' não ordenados.
27. Neste sentido, a tarefa dos
ministros é então de "organizar" o esforço comum de todos os
batizados, integrar os carismas de todos, coordenar harmonicamente todos os
serviços, animar o funcionamento da co-responsabilidade de todos os membros,
para que a Igreja esteja em condições de cumprir sua missão no mundo. "Sua
exata função é apascentar os fiéis de tal modo e reconhecer de tal maneira seus
serviços e carismas que todos, cada qual a seu modo, cooperem unanimemente na
obra comum" (LG 30).
"É, pois, um carisma de
direção, de coordenação, de governo, de presidência, como corresponde à cabeça
num organismo. Em última instância, o ministério sacerdotal é ministério da
unidade, num sentido próprio e característico, no qual não o é o dos leigos.
'Para que os fiéis se fundissem num só corpo, o mesmo Senhor constituiu alguns
deles ministros" (PO 2). É responsabilidade sua fazer com que o serviço de
todos seja um serviço de corpo, uma 'diakonia' corporativa".
28. E, para terminar, gostaria de
trazer aqui uma interessante explicação do nosso mestre Pe. Gregório Lutz: “O
sacerdócio ordenado é superior ou interior ao sacerdócio comum? Qualifico esta
pergunta como ociosa porque nenhum dos dois sacerdócios tem sentido sem o
outro. Mas como para muitos é difícil superar a visão da sublimidade quase
angélica do sacerdócio ministerial, eu gostaria de apresentar uma comparação
muito simples, mas prática: na construção de uma casa ou de um prédio trabalham
pedreiros e serventes. Se fossem só serventes, a solidez da construção não
seria garantida. Se fossem só pedreiros, quem poderia pagar a mão-de-obra? Os
dois são igualmente importantes. Assim é também na liturgia: deve haver
ministros ordenados e ministros, e outros participantes, leigos. Mas se alguém
insistir perguntando: Afinal, o pedreiro não é mais importante do que o
serventes? – Eu perguntaria: E quem são na liturgia os pedreiros e quem são os
serventes? Aí a resposta é clara: Os serventes são, como diz o seu nome mesmo,
os ministros, os ordenados; os pedreiros são os outros participantes da
celebração. O mesmo dizem, em outras palavras, o grande teólogo do Concílio
Vaticano II, Karl Rahner, e seu discípulo Herbert Vorgrimler: ‘A que o sacerdócio
ministerial visa é ao sacerdócio comum dos fiéis... Este é, medido com uma
última medida, o mais sublime’ (K. Rahner e H. Vorgrimler, Kleines
theologisches Wörterbuch, Freiburg, 1961 [Herderbücherei 108/109], p. 300)”.
Perguntas:
1.
Tente explicar com próprias palavras em que se baseia o sacerdócio universal
dos cristãos, e de que maneiras, as mais diferentes, na vida quotidiana e na
celebração da divina Liturgia, realiza-se hoje entre nós este sacerdócio?
2.
Tente explicar com próprias palavras a especificidade essencial (= da qual Deus
não abre mão) do sacerdócio ministerial, e como ela se realiza concretamente na
Igreja e na divina Liturgia?
BUYST Ione. Um povo que
celebra. In: BUYST Ione & SILVA José Ariovaldo da. O mistério celebrado: memória e compromisso Valencia/São Paulo,Siquem/Paulinas,
2003, p. 93-109. (Livros Básicos de Teologia 9).
CITRINI Túlio. L’essenza e il grado: destino di uma formula nel variare dei sistemi linguistici. In: Rassegna di Teologia, Nápoles/Roma, vol. 21, 1980, p. 471-475.
COMPÊNDIO do Vaticano II. Constituições, Decretos, Declarações. 26a ed., Petrópolis,
Vozes, 1997.
DE SMEDT Emile Joseph. O Sacerdócio dos Fiéis.
In: BARAÚNA Guilherme (Org.). A Igreja do Vaticano II, Petrópolis,
Vozes, 1965, p. 496-498.
ENGLER João de Castro. O sacerdócio dos batizados e sua atualização na sagrada liturgia. In: BARAÚNA Guilherme (Org.). A sagrada liturgia renovada pelo Concílio. Petrópolis, Vozes, 1964, p 251-279.
GIAVINI Giovani. Appunti sul culto e sul sacerdozio del popolo di Dio alla luce della Bibbia. In: La Scuola Cattolica, vol. 94, n. 3, 1966, p. 171-186.
GROSSI Vittorino. Sacerdócio
dos fiéis. In: DI BERARDINO
Angelo. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis/São
Paulo, Vozes/Paulus, 2002, p. 1239-1241.
KOSER Constantino. Os Grandes Temas da
Constituição Dogmática “Lumen Gentium. In: REB, Petrópolis, vol. 24,
fasc. 4, 1964, p. 959-976.
LUTZ Gregório. Celebrar em espírito e
verdade. São Paulo, Paulus, 1997. (Celebrar a fé e a vida 4).
OÑATIBIA Ignácio. Ministérios eclesiais. In: BOROBIO Dionísio. A celebração na Igreja II: Sacramentos. São Paulo, Loyola, p. 489-538 (in specie: p. 535-538: Ministério e laicato: o específico do ministério apostólico).
PIANIGIANI Ottorino. Vocabolario etimologico della lingua italiana. Genova, I Dioscuri, 1988.
SARTORI Luigi. Sacerdozio ministeriale e sacerdozio comune: Uma formula ambígua? In: Rassegna di Teologia, Nápoles/Roma, vol. 21, 1980, p. 409-412.
SEMMELROTH Otto. O povo sacerdotal de Deus e seus
chefes ministeriais. In:
Concilium, Petrópolis, n. 1, 1968, p. 78-90.
WALDE A. Lateinisches Etymologisches
Wörterbuch. Vierte Auflage. Zweite Band. M-Z. Heidelberg, Carl
Winter-Universitätsverlag, 1965.
* Palestra proferida no dia 15/10/03,
na 17a Semana de Liturgia, do Centro de Liturgia da Pontifícia
Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, com 243
participantes de todas as partes do Brasil.
Cf. José Ariovaldo da
Silva. “Sacrosantum Concilium”
e reforma litúrgica pós-conciliar no Brasil. Um olhar panorâmico no contexto
histórico geral da liturgia: dificuldades, realizações, desafios. In: CNBB. A
sagrada liturgia 40 anos depois (= Estudos da CNBB 87). São Paulo, Paulus,
2003, p. 33-51.
Na liturgia das festas, eles lêem sempre de
novo para os fiéis os relatos que fundamentam a fé. Por ocasião da renovação da
Aliança, eles proclamam a Torá (Cf. Ex 24,7; Dt 27; Ne 8). Eles são intérpretes
ordinários do livro da Lei, respondendo às consultas dos fiéis com instruções
práticas, e exercem uma função de juiz (Cf. Ex 24,7; Dt 17.8-14; 27; 33,10; Ne
8; Jr 18,18; Ez 44,23s; Ag 2,11ss).
Vittorino Grossi.
Sacerdócio dos fiéis. In:
Angelo Di Berardino (Org.). Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs.
Petrópolis/São Paulo, Vozes/Paulus, 2002, p. 1240.
De oratione 28,1-2. “Neste sentido, isto é, na ligação que
existe entre o viver e o culto, os cristãos se consideram ‘sacerdotes da paz’,
porque se opunham às violências do circo (Tertul., Spect. 16), falaram
do ‘sacerdócio da viuvez’ (Tertul., Ad uxorem 1,7) e do ‘sacerdócio do
martírio’ em ordem ao testemunho de Cristo (Cipr., Ep 77,3)” (Dicionário
patrístico..., op. cit., ibid.).
Ignácio Oñatibia. Ministérios eclesiais. In: Dionísio Borobio. A celebração na Igreja II:
Sacramentos. São
Paulo, Loyola, p. 535.
Gregório Lutz. Celebrar em espírito e verdade. São Paulo, Paulus, 1997, p. 36-37.