FRANCISCO
FAUS
A LÍNGUA
2ª edição
QUADRANTE
São Paulo
1996
Copyright ©
1994 QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais
Capa
José C. Prado
Ilustração
da capa
Almoço dos remadores, Pierre-Auguste Renoir
(1841-1919),
The Phillips Collection, Washington DC
Impressão
Gráfica de
Edições Paulinas
Via Raposo
Tavares, km 18,5 – São Paulo – SP
Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas Cristãos,
entre os títulos mais recentes, O homem bom e Lágrimas de Cristo,
lágrimas dos homens.
Distribuidor
exclusivo em Portugal: REI DOS LIVROS,
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– São Paulo – SP
PENAS E
GLÓRIAS DA LÍNGUA
COMO UMA CHARADA
– Vamos ver
se mata a charada!
– Vamos lá
ver...
– Qual é a
coisa que é um fogo que incendeia e, ao mesmo tempo, é água profunda; que está
cheia de veneno mortífero, mas pode ser chamada favo de mel e árvore da vida
que produz a cura; que tem o corte incisivo de uma navalha afiada e,
simultaneamente, é bênção e fluente doçura; e que, sendo uma espada, é também o
instrumento do hábil escritor que transmite sabedoria?
– Não está
fácil... Deixe eu pensar um pouco.
Pode ser que,
neste instante, algum leitor impaciente não consiga assistir passivamente ao
diálogo e queira intervir:
– Eu matei! É
a língua!
– Bem –
poderíamos retrucar-lhe –, não foi difícil arriscar essa resposta depois de ter
lido o título desta obra. Naturalmente, você pensou: o autor está querendo
introduzir o tema com uma adivinha que chame a atenção, coisa nada difícil em
se tratando de um membro tão versátil, contraditório e polifacético como a
língua.
– Mas por
acaso não foi isso o que pretendeu? Não se pode negar que tem engenho...
– Concordo
com isso da pretensão, mas não com o resto... Não atribua o mosaico de símbolos
e o aparente nonsense dessas imagens à minha imaginação febril ou
fecunda. Devo confessar que as comparações são todas elas copiadas; são, de
alto a baixo, um plágio, e um plágio consciente. Acontece, porém, que, neste
caso concreto, o autor das comparações deseja ardentemente ser copiado... Mais
ainda, providenciou que ficasse tudo escrito para poder ser copiado; quanto
mais copiado, melhor.
– Como assim?
– Porque o
autor é Deus! Todas as figuras e símbolos entrelaçados na charada que o leitor
houve por bem interromper estão tirados da Bíblia, que os aplica
especificamente à língua... Se quiser um trocadilho tão verdadeiro como as
citadas figuras, eu lhe diria que a Bíblia – isto é, o seu divino Autor –, por
assim dizer, não encontra palavras para expressar tudo o que, de bom e de mau,
pode ser dito da língua humana e do precioso instrumento da palavra que Deus
nos deu...
METÁFORAS
Veja bem como
é realista o que essas comparações manifestam, mesmo limitando-nos a escumar
agora algumas metáforas sobre a língua que, em boa parte, depois haveremos de
considerar com mais vagar.
Não é exato
dizer, por exemplo, como São Tiago, que a língua é um fogo..., e sendo
inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa vida (Tg 3, 6)? Quantas
vidas não conhece que a língua própria ou alheia reduziu a cinzas: umas vezes,
foi o incêndio provocado pela calúnia brutal que estraçalhou um prestígio;
outras, uma palavra ofensiva, repetida entre marido e mulher tantas vezes, que
acabou por desfazer um lar?
Mas também é
verdade, como diz belamente o livro dos Provérbios, que as palavras da boca
de um homem são águas profundas e que a fonte da sabedoria é uma
torrente transbordante (Prov 18, 4). Pense somente nas águas
profundíssimas, luminosas, vivificantes e curativas, que foram e continuam a
ser para os homens as palavras de Cristo. Pense no que significam ainda para
muitos as palavras ardentes dos que vivem sinceramente da fé de Cristo.
E para
lembrar imagens da “charada”, veja se não têm razão os Provérbios ao afirmarem
que as palavras agradáveis são como um favo de mel, doçura para a alma...
(Prov 16, 24). Não vai dizer-me que nunca teve a felicidade de experimentar
isso na sua vida... Há palavras cuja influência doce e benfazeja não se esquece
jamais.
Da mesma
forma, todos nos sentimos atingidos quando ouvimos São Tiago – grande
invectivador da má língua! – dizer sem rebuços que a língua... é um mal
irrequieto, cheia de veneno mortífero (Tg 3, 8). Será que não
experimentamos já a maligna comichão de falar o que não devemos, o que antes
mesmo de tê-lo dito, deixa na boca o sabor do veneno que a nossa língua se
dispõe a instilar...?
Ao lado
disso, certamente não faltaram ocasiões felizes – pela bondade de Deus – em que
a nossa língua teve o belo privilégio de curar, de dar saúde às feridas
(cf. Prov 12, 18), tanto às provocadas por nós mesmos como às causadas por
outros; e então a nossa boa língua foi uma árvore de vida – porque
alimentou esperanças, revigorou o amor, levantou, reabilitou –, ao contrário da
língua perversa, que corta o coração (Prov 15, 4) como uma navalha
afiada (Sl 52, 4).
A BOCA E O CORAÇÃO
Quantas
coisas não se podem dizer da língua, das suas elevações e abismos, das suas
contradições! Basta respigar por cima, como acabamos de fazer, na Sagrada
Escritura, para dar razão ao sentido pesar com que São Tiago escreve: Com
ela [com a língua] bendizemos o Senhor nosso Pai, e com ela amaldiçoamos
os homens, feitos à semelhança de Deus. De uma mesma boca procedem a bênção e a
maldição. Não convém, meus irmãos, que seja assim! Porventura lança uma fonte
por uma mesma bica água doce e água amarga? Acaso, meus irmãos, pode a figueira
dar azeitonas ou a videira dar figos? (Tg 3, 9-12).
São palavras
bem sentidas do Apóstolo, que apontam – falando sempre com imagens plásticas,
como Jesus – diretamente para a “fonte”, para a raiz de onde brotam os bons e
os maus influxos da língua. Trazem à memória os ensinamentos de Cristo: Uma
árvore boa não dá frutos maus, uma árvore má não dá bom fruto, porquanto cada
árvore se conhece pelo seu fruto. Não se colhem figos dos espinheiros, nem se
apanham uvas dos abrolhos. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu
coração, e o homem mau tira coisas más do seu mau tesouro, porque a boca fala
daquilo de que o coração está cheio (Lc 6, 43-45).
Se quisermos
uma chave para tudo quanto se possa dizer acerca da língua, estas
últimas palavras de Jesus no-la dão. Elas vão ser como que um pano de fundo
para todas as reflexões que virão a seguir e que visam contemplar a língua
com olhos cristãos.
E, a
propósito disto, vem-me à memória uma lembrança da infância, que é comum com
certeza a muitos outros um pouco menos jovens. Quando – coisa não rara num
garoto – irrompia uma indisposição intestinal que ia um pouco além do trivial
cotidiano, aparecia em casa o doutor, essa figura impagável e inesquecível do
médico de família. O Dr. Henrique, sempre um pouco despenteado à la
Einstein, invariavelmente, após informar-se dos sintomas e das possíveis causas
(“que andou comendo este moleque?”), ordenava: – “Mostre a língua! Tire a
língua!” E as crianças sabíamos que, das tonalidades da pequena língua
esbranquiçada e às vezes sulcada de estranhos regos, o doutor amigo tiraria
conclusões certíssimas, que se traduziriam numa receita indecifrável para todos
exceto para o honesto farmacêutico que a manipularia.
Penso que o
Senhor poderia dizer-nos também, como Médico divino: “Mostra-me a língua, e eu
te farei ver o teu coração, porque as tuas palavras – com as suas mil
tonalidades, cargas, intenções e acentos – são um retrato falado do teu
coração: dos teus sentimentos mais íntimos, das tuas purezas e sujidades, dos
teus tesouros espirituais e das tuas carências lastimáveis. Não me esqueças
nunca que a boca fala daquilo de que o coração está cheio”.
Mostrar a
língua, ver a língua e as suas fontes, procurar o modo de limpá-la, de elevá-la
aos níveis do amor cristão e de torná-la instrumento da caridade e da verdade
de Cristo, eis o objetivo que se propõem estas páginas. Nelas começaremos com
algumas considerações sobre a língua – a palavra – e o amor, para passarmos
depois a uma reflexão sobre as relações indissolúveis que deve haver entre a
palavra e a verdade.
PALAVRA E
AMOR
A PONTE DAS
PALAVRAS
DOIS VERSOS DE UMA
CANÇÃO
Uma canção
popular, que já começa a ter a pátina do tempo, exalta em versos simples –
daqueles que nunca vão passar para uma antologia literária – o valor da
palavra:
Palavra não
foi feita para dividir ninguém.
Palavra é a
ponte onde o amor vai e vem...
A alma
exprime-se pelo corpo, e especialmente pela língua. “Sendo o homem um ser ao
mesmo tempo corporal e espiritual, exprime e percebe as realidades espirituais
através de sinais e de símbolos materiais. Como ser social, o homem precisa de
sinais e de símbolos para comunicar-se com os outros, através da linguagem, de
gestos, de ações” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1146).
Nós falamos,
comunicamo-nos uns com os outros de inúmeras maneiras. Quanto não diz com
freqüência um simples olhar, um sorriso levemente esboçado, um silêncio
significativo, um gesto de paixão ou um aceno impregnado de afeto... Muitos são
os caminhos da linguagem que interliga em comunhão alma com alma. Mas a
grande ponte que Deus nos deu para nos comunicarmos entre nós – e para
nos comunicarmos com Ele – é a palavra: palavra pensada, interior; palavra
pronunciada; palavra publicada. É falando, conversando, escrevendo, que estamos
a construir constantemente pontes de intercomunicação: por elas a nossa alma –
a nossa vida! – vai passando, e chega até os outros, com toda a sua carga de
alegrias e dores, de ódios e amores, de desconcertos e dúvidas, de enganos e
desenganos, de perplexidades e certezas, de esperanças e ilusões.
É bom pensar
no que significam, todos os dias, as nossas palavras. Constroem ou destroem?
Enriquecem ou desgastam? Que fazemos diariamente com a língua? Talvez de súbito
não saibamos responder, mas uma coisa é certa: fazemos muito; de bom ou
de mau, mas fazemos muito.
Quando as
palavras têm raízes no amor, são sempre fecundas. Da abundância do coração
fala a boca. Muitos corações atenazados pelo erro, pela vergonha ou pelo
desespero reergueram-se por uma só palavra (Mt 8, 8) de Cristo. Os olhos
da mulher adúltera, cerrando-se para não ver as pedras com que os fariseus iam
esmagá-la, recuperaram a luz perdida e se acenderam com claridades inéditas,
mal ela escutou as palavras de perdão e alento de Cristo: Vai e não peques
mais! (Jo 8, 11). Zaqueu, o arrecadador desonesto, sentiu o coração
arrebentar-lhe o peito quando Jesus, ao passar junto dele, em vez de lhe
espetar um remoque de desprezo, lhe lançou uma palavra amiga: Zaqueu, desce
depressa, porque é preciso que eu fique hoje em tua casa (Lc 19, 5). Pedro
viu-se como um morto-vivo acabado de desenterrar quando Cristo, com a doçura do
perdão na língua, em vez de recriminá-lo pela sua indigna traição, lhe
perguntou: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? (Jo 21, 15).
Palavras de
compreensão, de perdão, de afeto, de estímulo; palavras que acordam, elevam,
iluminam, desvendam erros, apagam dúvidas, apontam rumos; palavras de amor,
compaixão e confiança, palavras-dom... Se quiséssemos, a nossa vida inteira,
cada um dos nossos dias, poderia ser uma contínua chuva de palavras fecundas,
capazes de suscitar vida, sem provocar tristezas, nem ira, nem ódio. Não há uma
única situação, agradável ou constrangedora, não há uma só pessoa neste mundo
que não possa fazer surgir, “do bom tesouro” do coração que verdadeiramente
ama, uma palavra construtiva.
Já imaginamos
o que seria a nossa vida se em cada instante fôssemos capazes de proferir a
palavra acertada, toda ela impregnada de sinceridade e amor, sem sombra
de malignidade, irritação, rancor, orgulho, rudeza ou desprezo? Não há dúvida
de que, além de nos tornarmos a alegria de Deus, seríamos a felicidade dos
homens. Já pensamos no que seria a “utopia” de um mundo em que as palavras
faladas, emitidas ou impressas, fossem apenas veículo da verdade e da caridade?
Se a nossa fantasia tivesse um mínimo de asas, perceberíamos que esse mundo
admiravelmente novo seria o próprio céu, pois não há um só mal no mundo que, de
alguma maneira, não esteja fundido com a maldade das palavras.
Mas esse “admirável
mundo novo” não existe, e toca a cada um de nós examinar a parte com que
contribuímos para a sinfonia amorosa ou para a dança macabra das palavras.
Vamos mergulhar, por isso, no poço sombrio da má língua, procurando extrair –
como Cristo sempre nos ajuda a fazer – luzes de vida das sombras da morte. Mas,
antes, deixemos mais uma vez a palavra – vigorosíssima e realíssima palavra –
ao Apóstolo São Tiago:
– Se
alguém não cair por palavra, esse é um homem perfeito, capaz de refrear todo o
seu corpo. Quando pomos o freio na boca dos cavalos, para que nos obedeçam,
governamos também todo o seu corpo. Vede também os navios: por grandes que
sejam e embora agitados por ventos impetuosos, são governados com um pequeno
leme à vontade do piloto. Assim também a língua é um pequeno membro, mas pode
gloriar-se de grandes coisas. Considerai como uma pequena chama pode incendiar
uma grande floresta! Também a língua é um fogo... (Tg 3, 2-6).
LÍNGUA DE CINZA
Também a
língua é um fogo. Existem fogos que purificam, aquecem e são fonte de
energia. E existem fogos que destroem. A língua, como o fogo, é ambivalente.
Antes, porém, de tratarmos das chamas, será oportuno que pensemos um pouco nas cinzas.
Porque, de fato, há línguas que não têm as qualidades, positivas ou negativas,
do fogo, mas são apenas cinzas apagadas, neutras.
É a essa palavra-cinza
que Cristo dá o nome de palavra “ociosa”, termo que também pode ser traduzido
por palavra “vã”, ou palavra “inútil” (cf. Mt 12, 36).
O que
impressiona em Jesus é a dureza com que se refere a esse tipo de palavras,
justamente após ter ensinado que a boca fala do que lhe transborda do coração,
e de que o homem manifesta pela palavra o bom ou o mau tesouro que tem dentro
de si: Eu vos digo: no dia do juízo, os homens prestarão contas de toda a
palavra ociosa que tiverem proferido. É por tuas palavras que serás justificado
ou condenado (cf. Mt 12, 34-36).
São
afirmações enérgicas que fazem pensar e que talvez nos deixem perplexos. É
natural que ao ouvi-las nos perguntemos se Jesus, ao falar assim, quis
porventura reprovar toda a espécie de fala ligeira, sem especial profundidade e
proveito. Neste caso, estaria condenada, por exemplo, a prosa intranscendente e
bem-humorada que se desenrola à volta da mesa numa comemoração familiar; ou o
diálogo divertido no ônibus durante uma viagem de férias; ou a conversa de uma
roda de amigos em torno de uma moderada cervejinha...
Quem conheça
um pouco o Evangelho logo descartará essa interpretação rígida e desumana, pois
bem sabe que o próprio Cristo manteve conversas de uma deliciosa simplicidade
familiar com sua Mãe e São José, com os seus discípulos, com Marta, Maria e
Lázaro... Jesus, “perfeito homem”, não estava pregando a palavra de Deus a toda
a hora. Ele, quando era tempo de conversar familiarmente, fazia-o com singeleza
e, sem dúvida – como deixa entrever o Evangelho –, alegremente e com uma boa
dose de simpatia. Ora, esse diálogo não é palavra inútil, é palavra humana,
palavra cordial, palavra afetuosa, palavra que alegra e que, deste modo, traz
consigo a carga positiva do amor.
Palavra
ociosa
é outra coisa. É aquela que não carrega consigo nada de bom, porque está vazia
de idéias e sentimentos e, portanto, é inútil para o amor.
Com esse tipo
de palavras, sim, devemos preocupar-nos, e estar cientes de que prestaremos
boas contas a Deus de todas elas: das palavras sem substância alguma, sem
interesse, afeto, ajuda, alegria ou verdade, que ocupam com a sua estéril
presença o lugar que deveriam ter ocupado palavras construtivas.
São palavras
ociosas, sobretudo, as palavras gastas, formais e sem vida, que se dizem gélida
e cansadamente na vida familiar, no relacionamento profissional, na conversa de
amigos, quando o amor ou a amizade já se tornaram uma ruína decadente. Tais
palavras rotineiras, sem calor nem cadência de afeto, sem vibração de
pensamento, sem entusiasmo nem sonhos escondidos em seu bojo, são uma monótona
e persistente chuva de cinzas, que vai sepultando o amor.
Famílias
outrora unidas, amizades velhas que acabaram, sabem desse mau sabor de cinzas,
que é apenas o gosto do vazio, do bolor da alma empobrecida, dos resíduos de
ideais queimados.
DO SEIO DO SILÊNCIO
As palavras
que brotam desses corações são “ociosas” porque do coração vazio nada se
consegue tirar e, em conseqüência, nada de válido se pode expressar nem
transmitir; só palavras “vãs”. Não estará precisamente aí o segredo do
crescente vazio verbal, reflexo do vazio espiritual, que é patente em muitos
homens e mulheres; e a explicação da progressiva redução do vocabulário
empregado nas conversas habituais? Se, como é fácil comprovar, cada vez se usam
menos palavras – e se usam de modo mais banal e redutivo –, é porque há no
interior dos homens pouca riqueza de idéias, valores, reflexões, sentimentos e
ideais; é porque o egoísmo predominante num mundo materialista está a espalhar
na sociedade – como na História sem fim de Michael Ende – o império do
Nada, que tudo devora e reduz a si mesmo: a nada!
É neste ponto
que se torna urgente falar no silêncio, matriz fecunda da palavra. Há
pobreza de palavras porque há pobreza de silêncio. Toda a palavra vale aquilo
que valer a sua raiz, que é o silêncio. Pois só são grandes e valiosas as
palavras que se geraram no seio do silêncio reflexivo, amoroso e orante.
Muitos são os
que mergulham no silêncio apenas para “fugir”, para dormir; ou utilizam mil
técnicas a fim de atingir um silêncio simplesmente relaxante; ou exercitam a “meditação”
com o pensamento bloqueado, suspenso num vácuo silencioso, em que julgam
elevar-se... e apenas dormitam. Sem darem por isso, buscam a paz do espírito na
cinza, isto é, no vazio. Quando, na realidade, é preciso buscá-la no Fogo, ou
seja, na Verdade e no Amor que vêm de Deus.
Só somos
ricos se o formos diante de Deus, se não formos do gênero daquele
rico-miserável de quem Cristo dizia que entesoura para si mesmo e não é rico
aos olhos de Deus (Lc 12, 21).
Como andamos
de riqueza interior? Que amadureceu, dentro de nós, no silêncio fecundo da
reflexão, da leitura, da oração? É nesse seio escondido que se vai formando –
com a graça de Deus e o nosso empenho – o verdadeiro “eu” de cada um de nós.
Aí, no íntimo da alma do cristão que sabe orar, é que se elaboram em forma de
critérios claros as luzes de Deus; aí, no silêncio sagrado do coração que reza,
formam-se as convicções e enraízam-se as virtudes; aí se definem as linhas
mestras da luta pessoal por melhorar cada dia um pouco mais; aí instala o seu
laboratório permanente o amor, mestre de alquimias que transformam penas em
alegrias, dificuldades em estímulos e mágoas em perdão. Quando um homem ou uma
mulher, por terem amadurecido no silêncio, se vão tornando ricos aos olhos de
Deus, desse seu “bom tesouro” podem ir tirando, sem ficarem pobres nem serem
nunca monótonos, palavras eternamente vivas, que são como ramos viçosos a
irromper em frutos, pela seiva de amor, verdade e Graça que os vivifica.
Um grande
conhecedor da grandeza inefável do silêncio com Deus, Ernest Psichari,
escrevia: “A esses grandes espaços de silêncio que atravessaram a minha vida,
devo eu afinal tudo o que em mim possa haver de bom. Pobres daqueles que não
conheceram o silêncio! O silêncio, que faz mal e que faz bem, que faz bem com o
mal! O silêncio que desliza como um grande rio sem escolhos...Por muitas vezes
ele veio ter comigo, como um mestre bem-amado, e parecia ser um pouco de céu
que descia até o homem para o tornar melhor... Então, eu parava cheio de amor e
de respeito, porque o silêncio é também o mestre do amor”[NOTA DE RODAPÉ: Les
voix qui crient dans le désert, Paris, págs. 266-267.]
Desses
sagrados abismos de silêncio sai a palavra que dá vida, por ser reflexo e
irradiação de Cristo, a Palavra que é Vida. Quem dera que pudéssemos dizer como
São Paulo: Cristo vive em mim! (Gal 2, 20), porque então também Cristo
falaria pela nossa boca.
JUÍZOS E
PALAVRAS
A PROPÓSITO DE LADRÕES
Num ambiente
social em que os meios de comunicação abordam diariamente o tema da corrupção,
não é de estranhar que muitos, ao mesmo tempo que sentem ferver-lhes por dentro
a indignação ante as notícias, repitam sem perceber palavras quase iguais a
outras que já foram pronunciadas há perto de dois mil anos: Graças te dou, ó
Deus, porque não sou como os outros homens: ladrões, injustos... O que
talvez eles tenham esquecido é que essas palavras foram colocadas por Cristo na
boca de uma figura que apresentou como paradigma da hipocrisia: o fariseu (cf.
Lc 18, 11).
Pode ser que
o leitor, ao ouvir mencionar esse aspecto, tenha comentado baixinho: – “Mas
pelo menos roubar, eu não roubo”. Caso tenha feito assim, peço-lhe que não leve
a mal uma pergunta:
– Será?...
– Que quer
dizer com isso? Insinua por acaso que...
– Não, não
desejo insinuar coisa alguma, mas apenas convidá-lo a uma reflexão, que nos
pode ser proveitosa a todos nós.
Quando
pensamos que “nunca roubamos”, sem dúvida temos em mente a certeza de que
jamais nos apropriamos do dinheiro nem de objetos de valor de ninguém, não
falsificamos cheques nem subtraímos cartões de crédito, não armamos arapucas
para apanhar incautos, nem nos dedicamos a viver da trapaça. Quanto a isso, não
há nenhuma dúvida.
No entanto,
deveríamos cair na conta de que existem bens muito maiores do que as
barras de ouro, as mansões e as contas bancárias: o bom nome, a boa
fama, a dignidade.
Todo o ser
humano tem o direito de ser respeitado na sua dignidade, um bem intocável que
lhe pertence porque lhe foi dado, juntamente com a alma feita à imagem de Deus,
pelo seu Criador. Tirar ou manchar injustamente o bom nome é roubar um tesouro
muito mais valioso do que os bens materiais. “Todo o ser humano – dizia ante a
Assembléia Geral da ONU João Paulo II – tem uma dignidade que jamais poderá ser
diminuída, ferida ou destruída, antes deve ser respeitada e protegida”[NOTA DE
RODAPÉ: Discurso, 22-X-1979.].
Será que
nunca privamos ninguém, pelo menos parcialmente, deste bem? Não teremos
contribuído com as nossas críticas para sujar injustamente um nome ou
enxovalhar uma reputação? Pois bem, a propósito de ladrões, talvez nos convenha
pensar um pouco nesse assaltante engenhoso, insidioso e eficiente que é, não
poucas vezes, a língua.
O MAU JUÍZO ACENDE A MÁ
LÍNGUA
A faísca que
costuma acender a chama incendiária da língua é o mau juízo. Primeiro pensamos,
depois falamos, mesmo que a diferença entre ambos os atos – pensar e falar –
seja de uma fração de segundo. Em todo o caso, é evidente que, se falamos mal
de alguém, é porque antes pensamos mal. Mais uma vez vem à lembrança a frase de
Cristo que está no subsolo de todas estas páginas: A língua fala daquilo de
que está cheio o coração.
Quando
admitimos um mau juízo, é difícil que depois este não se traduza externamente,
quer em atitudes – de antipatia, de menosprezo, de desconfiança... –, quer em
comentários: “Não confio em Fulano”, “o que será que está tramando esse aí...?”,
“vai ver que está fingindo...”, “todos, nessa repartição, são desonestos”...
Daí a cair na murmuração mais demolidora e feroz, e até mesmo a escorregar para
a calúnia, vai somente um passo.
O novo Catecismo
da Igreja Católica, que, com a sua rigorosa precisão de doutrina, nos vai
ajudar freqüentemente nas próximas páginas, quando trata do tema que agora nos
ocupa, diz: “Torna-se culpado de juízo temerário aquele que, mesmo tacitamente,
admite como verdadeiro, sem fundamento suficiente, um defeito moral no próximo”
(n. 2477).
“Mesmo
tacitamente”, ou seja, mesmo sem falar. Basta o assentimento interior, basta “admitir
como verdadeiro” por dentro, “sem fundamento suficiente”, um erro moral ou
alguma má intenção de alguém, para cair nesse pecado contra a justiça e a
caridade, que muitas vezes pode ser grave. Por isso Cristo nos manda
taxativamente: Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não
sereis condenados... Porque do mesmo modo que julgardes, sereis também vós
julgados [por Deus] e, com a medida com que tiverdes medido, também vós
sereis medidos (Lc 6, 37 e Mt 7, 2).
“Para evitar
o juízo temerário – lemos ainda no Catecismo –, todos hão de cuidar de
interpretar de modo favorável tanto quanto possível os pensamentos, as palavras
e as ações do próximo” (n. 2478).
“Tanto quanto
possível”! Aí está a chave que nos permite entender corretamente o que Jesus
mandou. “Não julgueis” não significa um apelo à irreflexão ou à ingenuidade. Há
erros alheios que não precisamos “julgar” por serem patentes; por exemplo, um
crime cometido à vista de muitos. Em todos estes casos, porém, Deus nos pedirá
a humildade de não entrarmos no terreno que só a Ele pertence, que é o juízo
sobre o fundo último dos motivos e das intenções. Somente Deus vê no coração. É
exatamente nesse contexto que foi escrita esta bela consideração do
Bem-aventurado Josemaría Escrivá: “Não admitas um mau pensamento de ninguém,
mesmo que as palavras ou obras do interessado dêem motivo para assim julgares
razoavelmente”[NOTA DE RODAPÉ: Caminho, n. 442.].
Mas o autor
deste conselho não se contradiz quando no mesmo livro afirma que, às vezes,
existe um “dever de julgar”[NOTA DE RODAPÉ: ibid., n. 463.]. É claro que
não se refere apenas ao dever de ofício dos juízes; refere-se – pelo contexto –
especialmente ao dever que têm todos aqueles que são responsáveis por outrem:
pais, autoridades, empregadores, encarregados, professores... Julgar, nestes
casos – sempre, como é óbvio, “com fundamento suficiente” –, é um verdadeiro
dever de amor e de justiça, tanto para ajudar o interessado – aconselhando ou
corrigindo –, como para prevenir possíveis males para outros. Não ofende,
portanto, a Deus nem lesa a dignidade do próximo quem, por exemplo, fecha a
quatro chaves as garrafas de pinga ou de uísque, após ter verificado que alguém
já sumiu, lá em casa, com três delas... Da mesma forma, não julga mal a mãe que
põe restrições a certas saídas noturnas do filho adolescente, ainda que este se
sinta ferido de desconfiança, tendo em conta que o filho, por melhor que seja,
certamente não é um arcanjo, e por isso sente ferver por dentro as mesmas más
inclinações que qualquer outro ser humano, especialmente se se mete num
ambiente propício para que elas aflorem.
Mas tudo o
que acaba de ser dito não anula, absolutamente, o fato de que com demasiada
freqüência fazemos juízos “temerários”, que – esses sim – ofendem a Deus e ao
próximo. Como evitá-los, uma vez que surgem quase sem os percebermos? Além de
crescer no amor e nas virtudes, de ter Deus mais metido dentro do coração,
muito nos pode ajudar reconhecer o motivo íntimo desses nossos juízos críticos.
É o que vamos considerar a seguir.
O MENINO EM CAMPO VERDE
O menino da
cidade grande foi passar uns dias de férias ao campo, perto de uma represa.
Passeando pela estrada que beirava a extensão infindável de lavouras
primorosamente alinhadas, alguém comentou, entendido que era no assunto: – “São
de um japonês”. Mas o menino-do-asfalto não escutava, porque os seus olhos se
prendiam, cativados, a um grande campo em declive, coberto de folhinhas
rendilhadas, de um verde belíssimo. Instintivamente, agachou-se e estendeu a
mão para um dos molhos de folhinhas mais próximo da estrada. Chovera à noite e
a terra estava fofa. Puxou. As folhinhas subiram com a mão, e de dentro da
terra emergiu, presa a elas, uma linda forma de cone invertido de uma cor
vermelho-alaranjada: acabava de descobrir a cenoura!
Se a nossa
sinceridade fizesse a mesma coisa no campo da alma, puxando pelos juízos
temerários até ver o que sai na raiz, veríamos emergir muitas “cenouras”. Ou
melhor, para não dar conotação negativa a essa simpática hortaliça, veríamos
aparecer muitos tubérculos venenosos, dos quais os juízos temerários – e as
palavras que a eles se seguem – são apenas as folhas.
Por que
pensamos mal e acabamos falando mal? Sempre ou quase sempre é porque – como no Hamlet
– “há algo de podre no reino da Dinamarca”, ou seja, algo está contaminado na
nossa alma.
Quais são,
com efeito, as causas que nos movem a pensar e a falar mal dos outros? Vejamos
apenas algumas.
O orgulho
é a principal. A pessoa humilde reconhece os seus erros. A orgulhosa tem
necessidade de justificá-los, desculpando-se e, sobretudo, convencendo-se de
que os outros fazem como ele e provavelmente fazem bem pior. São muitos os que “focalizam
as pessoas com as lentes deformadas dos seus próprios defeitos”[NOTA DE RODAPÉ:
Josemaría Escrivá, Sulco, n. 644.]. Se eles são interesseiros,
negar-se-ão a aceitar que o desinteresse dos outros seja autêntico: – “Algo
está por trás!” Se eles são descontrolados e devassos, acharão hipócritas ou
castrados os que são sóbrios e castos. Chegar-se-á até ao lamentável espetáculo
que numerosas publicações oferecem hoje em dia: uma verdadeira sanha compulsiva
que se empenha em destruir famas verdadeiras, prestígios merecidos e heroísmos
autênticos de uma porção de grandes figuras da história, da pátria, da Igreja.
As almas sujas, covardes e medíocres arremessam o seu orgulho de anões vencidos
em forma de demolição de grandezas.
“É – comenta
o Beato Escrivá – como se alguns usassem continuamente umas viseiras que lhes
alterassem a visão. Não acreditam, por princípio, que seja possível a retidão
ou, ao menos, a luta constante por comportar-se bem. Como diz o antigo adágio
filosófico, recebem tudo segundo a forma do recipiente: em sua prévia
deformação. Para eles, até as coisas mais retas refletem, apesar de tudo, uma
atitude retorcida que adota hipocritamente a aparência de bondade. «Quando
descobrem claramente o bem – escreve São Gregório –, esquadrinham tudo para
examinar se, além disso, não haverá algum mal oculto»”[NOTA DE RODAPÉ: É
Cristo que passa, n. 67.].
Ao lado do
orgulho, quem não sabe que a inveja corrompe também o juízo e afia a
língua? Para a moça feia, a bonita necessariamente será burra ou leviana. Para
o preguiçoso, que não foi capaz de levar avante um trabalho sério, o honesto
profissional bem sucedido – e bem “suado” – terá galgado o êxito baseando-se em
falcatruas ou influências políticas. E para o torcedor de bandeira abaixada, o
outro time terá comprado o juiz. “A maledicência é filha da inveja; e a inveja,
o refúgio dos infecundos”[NOTA DE RODAPÉ: Sulco, n. 912.].
Como é
diferente a reação da pessoa sincera, que tem ideais nobres e luta seriamente
por eles! Uma pessoa assim tende, por instinto, a ser benevolente e
compreensiva, porque possui experiência de duas coisas: em primeiro lugar, de
que o bem que queremos fazer com a melhor boa vontade é muito trabalhoso de se
realizar; e, por outro lado, que nem sempre o que “conseguimos” após sinceros e
continuados esforços corresponde ao que honestamente “tentamos”. Essa
experiência, que nos faz desejar a compreensão dos outros para conosco,
leva-nos a ser também compreensivos para com eles.
LÍNGUAS COMO
ESPADAS
ALARGANDO FERIDAS
Falando dos
seus perseguidores maldizentes, Davi clamava ao Deus Altíssimo e dizia-lhe: Seus
dentes são como lanças e flechas, suas línguas como espadas afiadas (Sl 57,
5).
A língua
maldizente é uma arma terrível, por vezes letal. Como já considerávamos
anteriormente, com ela fere-se e pode-se até destruir o bem precioso da fama,
da boa reputação.
A espada da
língua desfere sobretudo duas perigosas estocadas: a maledicência
(também chamada difamação ou detração), que é praticada por “aquele que, sem
razão objetivamente válida, revela a pessoas que não o sabem os defeitos e
faltas de outros”; e a calúnia, pecado que comete quem, “por palavras
contrárias à verdade, prejudica a reputação dos outros e dá ocasião a falsos
juízos a respeito deles” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2477).
Após mostrar,
nas definições acima, os ferimentos causados pela espada da língua, o novo Catecismo
diagnostica-lhes o alcance: “Maledicência e calúnia destroem a reputação do
próximo. E a honra é o testemunho social prestado à dignidade humana. Todos
gozam de um direito natural à honra do próprio nome, à sua reputação e ao seu
respeito. Dessa forma, a maledicência e a calúnia ferem as virtudes da justiça
e da caridade” (n. 2479).
Talvez
tenhamos lido esses textos, achando-os muito exatos, mas não lhes tenhamos
prestado a devida atenção. Imaginemos uma pessoa que os apreciou, louvando a
clareza de doutrina do Catecismo. Como reagiria se lhe disséssemos, com
uma ponta de ironia, no meio de uma conversa em que criticou parentes com a
maior naturalidade:
– Você está
pecando por maledicência!
– Como? –
retrucaria, provavelmente, com ar de inocência –; se o que acabo de dizer é a
verdade!
– Justamente!
O pecado de maledicência consiste em divulgar, entre pessoas que não os
conhecem e sem razão objetivamente válida, defeitos e faltas reais dos
outros. A circunstância de os fatos serem verdadeiros não torna lícito que os
divulguemos.
Estamos aqui,
na realidade, perante um dos aspectos mais sérios e mais belos da doutrina
cristã sobre o respeito à dignidade e à fama do próximo.
Lembremo-nos
de que – como já víamos antes – todo o ser humano possui a imensa dignidade que
lhe confere o fato de ter sido “querido por si mesmo” por Deus e criado à sua
imagem. O cristão, além disso, sabe-se elevado pela graça à condição de filho
de Deus e participante da própria natureza divina (cf. 2 Pe 1, 4).
Deve-se
acrescentar a isso que a misericórdia de Deus não condena ninguém, nesta terra,
a ficar “prisioneiro perpétuo dos seus erros”. Todos somos moralmente “plásticos”,
maleáveis, ou seja, podemos mudar. A nossa história é, aos olhos de Deus, até à
morte, uma história aberta, porque a qualquer instante a nossa vida pode ser
purificada, completada, restaurada, dignificada, elevada até aos mais altos
cumes da perfeição e do amor. Portanto, enquanto vivemos, nenhuma mancha é
indelével nem nos define para sempre. Não há um só pecado que nos manche
irreparavelmente com a sua sujidade: quer seja a inconstância, a desonestidade,
a mentira ou a luxúria... A graça pode fazer do covarde um forte, do mentiroso
um irradiador da verdade e de um devasso um casto...
A
maledicência, no entanto, tem o efeito de “tingir” a honra com uma tinta
difícil de limpar. Quer queiramos quer não, a pessoa que nós criticamos fica “marcada”,
e em muitos casos essa imagem negativa que passamos é a que vai permanecer. E,
dado que a língua é um fogo (Tg 3, 6), o incêndio tende a alastrar-se. A
murmuração passa facilmente de boca em boca, até criar uma “má reputação”, uma “fama”,
que acompanhará a pessoa como a sombra. Não importa que o erro criticado tenha
sido episódico, correspondendo apenas – moralmente falando – a uma má fase da
vida, nem que já tenha sido corrigido e reparado. O “tingido” pela má língua,
em muitos casos, ficará sendo ante a opinião dos outros “o homem desonesto”, “a
mulher falsa”, “o médico irresponsável” ou “o advogado picareta”...
Esta má fama,
além de ferir a pessoa atingida, torna-se um empecilho que lhe dificulta a
prática do bem. Como pode gozar de autoridade moral um pai desprestigiado pela
difamação aos olhos dos seus filhos ou um professor entre os seus alunos? E, no
entanto, pessoas boas, que tiveram fraquezas e têm – como todos – defeitos, se
lhes fosse respeitada a boa fama, poderiam fazer um bem muito maior. Daí que o
maldizente não só peque contra a caridade – magoando, fazendo sofrer o
criticado –, mas sobretudo contra a justiça, desrespeitando um direito e
roubando um grande bem.
Não estará de
mais recordar aqui que o fato de uma pessoa ocupar um cargo público – um
político, um magistrado, um governante – não torna “pública”, do domínio
público, a sua vida privada. Comentar faltas puramente pessoais – de âmbito
estritamente particular – de um homem público, faltas que não afetam nem põem
em perigo o bom desempenho da sua missão, é uma maledicência tanto ou mais
grave do que a difamação de um simples cidadão.
Referindo-se
sobretudo aos responsáveis pelos meios de comunicação, o novo Catecismo
formula os critérios que uma consciência bem formada deve seguir: “Os
responsáveis pela comunicação devem manter uma justa proporção entre as
exigências do bem comum e o respeito dos direitos particulares. A ingerência da
informação na vida privada de pessoas comprometidas numa atividade política ou
pública é condenável na medida em que ela viola a sua intimidade e liberdade”
(n. 2492).
QUANDO CALAR, QUANDO
FALAR?
A pauta que,
habitualmente, uma pessoa reta deve seguir é a que marca, em breves palavras, o
livro Caminho: “Não faças crítica negativa; quando não puderes louvar,
cala-te”[NOTA DE RODAPÉ: N. 443.].
A isto
poderia objetar-se: – “Mas Cristo não se calou!”
Certamente,
no Evangelho recolhem-se invectivas fortes de Jesus contra os escribas e
fariseus “hipócritas”, invectivas com as quais o Senhor desmascara publicamente
erros e pecados muito concretos: Devorais as casas das viúvas, fingindo
fazer longas orações...; pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e
desprezais os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia, a
fidelidade...; limpais por fora o copo, e por dentro estais cheios de roubo e
de intemperança...; pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais
cheios de hipocrisia e de iniqüidade (cf. Mt 23, 14 e segs.).
Como se
entende que Cristo deixe a descoberto as faltas morais de uns homens que, como
Ele próprio diz, têm boa reputação: Pareceis justos aos olhos dos homens?
Aparentemente, isto contradiz a doutrina que acabamos de expor há um instante.
Para desfazer
esta aparente contradição, pensemos em primeiro lugar: podemos porventura
apontar uma única ocasião em que Jesus comentasse com outros ou falasse em
público de misérias e faltas pessoais que fossem apenas manifestação da
fraqueza humana? Vasculhemos o Evangelho, e nada encontraremos. Só veremos
misericórdia para com a miséria moral da pobre mulher adúltera, piedade para
com o pai do menino doente que tinha uma fé fraca, mão estendida ao fiscal
pouco liso, mas predisposto à generosidade, chamado Zaqueu... Tanta
misericórdia, que o Senhor é criticado por ser amigo de publicanos e
pecadores (cf. Lc 7, 34).
Quer dizer
que o exemplo que Jesus nos dá constantemente é o de calar com mansidão,
compreender e entregar-se com toda a alma, com infinito amor, à tarefa de levar
os pecadores ao arrependimento e ao perdão.
Mas há um
caso em que não permanece calado, e é quando se defronta com hipócritas que,
amparando-se na autoridade de que gozavam diante do povo – como era o caso dos
escribas e fariseus – enganavam-no, afastavam-no da autenticidade da fé,
aproveitavam-se da sua ignorância. Um novo elemento entra aqui em jogo: o bem
de terceiros ou o bem público. E então as coisas mudam. Quando está
ameaçado o bem comum, especialmente o dos mais pequeninos, o dos inocentes, falar
dos erros e defeitos com que outros lhes causam dano torna-se um dever.
Por isso, o
novo Catecismo ensina – como sempre fez a Igreja – que pode haver “razões
objetivamente válidas” para dar a conhecer a quem os ignora defeitos morais do
próximo. Tal é o caso do jornalista consciencioso que se sente no dever de
denunciar desonestidades comprovadas, em questões administrativas, de um
político ou de um candidato, pois é presumível com fundamento – com “razões
válidas” – que venha a malversar os bens públicos. Ou, então, o caso do aluno
que informa a diretoria do colégio da atuação comprovadamente corruptora de um
professor. Nestes casos, o bem de uma comunidade exige a denúncia, sempre por
justiça e por caridade com os demais.
Há ainda
outras circunstâncias em que dar a conhecer o defeito moral oculto de uma
pessoa é lícito, e até mesmo pode constituir um dever. Os bons moralistas
apontam, entre outras, as seguintes:
– o bem de
uma pessoa inocente: é lícito, sem dúvida alguma, prevenir um amigo, um
parente, uma colega de estudos ou de trabalho, de que a pessoa com quem namora
está ocultando uma conduta ou uns fatos que, se vierem a saber-se depois do
casamento, poderão ocasionar graves problemas; por exemplo, revelar que tal
pessoa esconde que tem um filho, ou que é viciada em heroína, ou que é fugitiva
da justiça em outro Estado. Ou ainda avisar um profissional de boa fé de que
alguém que postula um cargo de confiança na sua empresa tem um longo histórico
de trapaças.
– o bem
próprio justifica também que se divulguem faltas morais alheias ocultas,
como é óbvio no caso de uma pessoa falsamente acusada, que pode aduzir provas
sobre quem é o verdadeiro culpado. Também é lícito, evidentemente, revelar
mazelas morais de pessoas que nos são próximas, para pedir conselho a quem nos
possa orientar: ao sacerdote, a um amigo experiente, a uma boa psicóloga, ao
pai ou à mãe...
Sempre fica
claro, em todos estes casos, que são a justiça e o amor que imperam: é por
justiça e por amor que se fala, da mesma maneira que é por
justiça e por amor que a regra geral é calar-se. O pecado de
maledicência é a crítica negativa, reveladora de mesquinhez de alma. “Fazer
crítica, destruir, não é difícil: o último aprendiz de pedreiro sabe cravar a
sua ferramenta na pedra nobre e bela de uma catedral. Construir: esse é
trabalho que requer mestres”[NOTA DE RODAPÉ: Caminho, n. 456.].
O DENTE DA COBRA
A maledicência
mexe nas feridas – nos defeitos morais –, torna-as ostensivas e as infecciona.
A calúnia morde num membro são – num aspecto da conduta do próximo que é
sadio – e instila-lhe veneno mortífero. Caluniar é falar mal dos outros, mas
acrescentando à crítica a mentira: “Por palavras contrárias à verdade,
prejudica a reputação dos outros e dá ocasião a falsos juízos a respeito deles”
(Catecismo da Igreja Católica, n. 2477).
Toda a
calúnia é uma infâmia e traz, mais vincada ainda que a maledicência, a marca da
injustiça.
Se qualquer
agressão verbal mostra o que há no coração de quem fala, a calúnia denota uma
alma especialmente sórdida: porque a calúnia, ou é filha da frivolidade
irresponsável, que repete falsidades sem apurá-las, pelo prazer de mal-dizer;
ou visa maldosamente destruir, afundar, denegrir, fazer mal. Entram aí na
dança, as paixões mais repulsivas, e especialmente o ódio e a inveja vicejam
como no seu “habitat” predileto.
Infelizmente,
caluniar transformou-se num “esporte social”, que com demasiada freqüência se
pratica nas conversas privadas e nos meios de comunicação. Há como que uma
espécie de compulsão de servir a toda a hora, de bandeja, reputações
dilaceradas, como Salomé “serviu” a Herodes a cabeça de São João Batista; com a
mesma futilidade e o mesmo sorriso desavergonhado (cf. Mc 6, 28).
Dizem-se e
escrevem-se autênticas aberrações sem fundamento, baseadas muitas vezes numa
simples suspeita, no que “se diz” (isto é, no que alguma pessoa mal
intencionada ou irrefletida comentou), no que “se escreve naquele país”, ou no
que “interessa” afinal combater, com quaisquer armas e a qualquer preço – a
começar pela mentira –, por razões ideológicas, políticas ou econômicas. Desta
forma, leviana ou maliciosamente, soterram-se pessoas e instituições debaixo de
toneladas de lama, e se lhes envenena, com dente de cobra peçonhenta, o sangue
limpo da reputação.
Os mais
cínicos tentarão justificar-se dizendo que não “afirmam”, apenas levantam uma
hipótese com base em indícios, ou no “dever de informar”, pois se trata de
coisas muito comentadas por aí. São conhecidos, nos manuais de Ética
jornalística, exemplos de desonestidade caluniosa, como os destas hipotéticas
manchetes sensacionalistas: “Nada indica que o Cardeal de Paris esteja
realmente envolvido no crime sexual do Bois de Boulogne”, ou “Não há indícios
da participação ativa do Primeiro Ministro no affaire das drogas”.
Maneiras indiretas – ou diretíssimas? – de caluniar inocentes, ligando os seus
nomes a crimes com os quais nem remotamente têm nada a ver.
Qualquer
pessoa medianamente inteligente sabe que um mesmo fato pode ser apresentado com
mil tonalidades. E a “tonalidade”, ou o ângulo de visão, é outra forma de
caluniar. Pode-se escrever, por exemplo: “O vigário da igreja de São Bráulio,
estando com uma idade em que já teria o direito de gozar de um merecido
descanso, sobretudo após a operação de três pontes de safena que sofreu há
poucos meses, continua labutando corajosamente para levar avante o projeto de
uma sede social destinada ao atendimento dos necessitados, apesar das
dificuldades existentes para levantar fundos neste tempo de crise”.
Eis o mesmo
fato, em outra versão de veneno anticatólico: “Quem tiver a curiosidade de
passar pela igreja de São Bráulio pode apostar que ouvirá um padre que – como a
maioria dos seus congêneres – só sabe falar do único «deus» que realmente
cultua, o dinheiro. Tome cuidado com a sua carteira, pois o reverendo tentará
entrar de assalto nela com o conhecido conto da construção de um centro social”.
De maneira parecida, como todo o mundo sabe, jorram litros de tinta para
ridicularizar e ferretoar as mais nobres intenções, as organizações mais respeitáveis
e as mais sérias iniciativas. Bem dizia Rubem Braga, falando da profissão
jornalística: “Imprudente ofício é este de viver em voz alta”. Precisa-se de
ter muito “boa” voz!
Os
caluniadores e os “mercadores da suspeita”[NOTA DE RODAPÉ: Cf. É Cristo que
passa, n. 69.] pecam, quase sempre gravemente, contra a justiça, e
fica-lhes na consciência uma obrigação estrita, sem a qual não podem esperar o
perdão de Deus nem nesta vida nem na outra: a obrigação de reparar, de
retificar, de restituir a fama injustamente lesada. Também o maldizente – que
mexeu em feridas reais – deve fazer o possível por contrarrestar o mal que
causou denegrindo reputações. Bem claro é a este respeito o novo Catecismo,
reafirmando a doutrina perene da Igreja:
“Toda falta
cometida contra a justiça e a verdade impõe o dever de reparação, mesmo
que o seu autor tenha sido perdoado. Quando se torna impossível reparar um erro
publicamente, deve-se fazê-lo secretamente; se aquele que sofreu o prejuízo não
pode ser diretamente indenizado, deve-se dar-lhe satisfação moralmente, em nome
da caridade. Esse dever de reparação se refere também às faltas cometidas
contra a reputação de alguém. Essa reparação, moral e às vezes material, será
avaliada na proporção do dano causado e obriga em consciência” (n. 2487).
Referindo-nos
à calúnia, assomamos já ao âmbito da mentira, outra água amarga que jorra da
fonte da língua. Vamos, pois, entrar em cheio, na última parte desta obra, no
campo em que a verdade e a mentira se debatem.
PALAVRA E
VERDADE
A PONTE DA
VERDADE
Renunciai à
mentira. Fale cada um ao seu próximo a verdade (Ef 4, 25).
Lembrávamos
acima versos despretensiosos de uma canção: “Palavra é a ponte onde o amor vai
e vem”. A autenticidade simples dessa frase seria a mesma se dissesse: “Palavra
é a ponte onde a verdade vai e vem”. Foi para isso que Deus nos deu também o
dom precioso da fala: “A palavra tem por finalidade comunicar a outros a
verdade conhecida” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2485).
A palavra é a
ponte, a janela aberta das almas que se comunicam. Deve ser, portanto, o
reflexo sincero do que há dentro delas: dos pensamentos, dos conhecimentos, das
intenções, do que se sente... Em suma, a palavra tem que ser a tocha que
transporte a luz da verdade. Como veremos adiante, algumas vezes poderá ser
conveniente e até necessário resguardar, sob o véu do silêncio, algumas
verdades que, pelas circunstâncias, poderiam ferir, ser profanadas ou machucar
vistas ainda fracas... Mas o que jamais se pode fazer é converter a língua em
tocha portadora da fumaça da mentira.
Só Deus é a
fonte da verdade, Ele que é a Verdade essencial e absoluta, da qual toda a
verdade é apenas o resplendor. Cristo, Deus feito homem, é, em si mesmo, a
Verdade (Jo 14, 6), a luz verdadeira que [...] ilumina todo o
homem (Jo 1, 9). Aos primeiros cristãos, diz São Paulo: Em tempos, éreis
trevas, mas agora sois luz no Senhor. Procedei como filhos da luz, pois o fruto
da luz consiste em toda a sorte de bondade, de justiça e de verdade (Ef 5,
8-9). E São João, escrevendo a Gaio: Alegrei-me muito com a vinda dos irmãos
e com o testemunho que deram da tua verdade, de como andas na verdade. Não
tenho maior alegria do que ouvir dizer que os meus filhos caminham na verdade
(3 Jo, 3-4).
A verdade é o
terreno de Deus: tanto a verdade sobre o ser e o sentido de Deus, do mundo e do
homem, como a verdade no fundo do coração (Sl 51, 8), isto é, a
sinceridade nos pensamentos e nas palavras. Entende-se, por isso, que uma das
mais sentidas recriminações de Cristo aos seus opositores fosse: Agora
procurais tirar-me a vida, a mim que vos falei a verdade (Jo 8, 40).
Se a verdade
é o terreno de Deus, a mentira é o território do diabo. Todo aquele que foge da
verdade, que a odeia, que a encobre, que a macula mentindo, está no terreno do “príncipe
das trevas”. Têm uma força tremenda as palavras dirigidas por Jesus a uns
corações obcecados pela soberba e obstinados em rejeitar a verdade: Vós
tendes como pai o demônio e quereis fazer os desejos do vosso pai. Ele era
homicida desde o princípio [pois introduziu no mundo a morte das almas e
dos corpos, enganando os nossos primeiros pais] e não permaneceu na verdade,
porque a verdade não está nele. Quando diz a mentira, fala do que lhe é
próprio, porque é mentiroso e pai da mentira (Jo 8, 44).
Estas
palavras de Cristo colocam-nos perante uma realidade sombria, que não é
possível ignorar. Se Deus é luz e nele não há treva alguma (1 Jo 1, 5),
se Cristo é a
luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem (Jo 1, 9), o
diabo, pelo contrário, é o pai da mentira, a tal ponto que a mentira é “o
que lhe é próprio”, o seu sinal característico.
Mas o “pai da
mentira” é destro no ofício de mentir. Raras vezes sugere grossas mentiras sem
máscara. Pode ser que lhe poupem esforços os homens já embotados pelo mal e
proclives a admitir facilmente qualquer falsidade. Mas o habitual é que o diabo
atue na penumbra. Costuma operar deixando entrever equívocos, que apresentam a
mentira com aparências de verdade. O Maligno gosta do nevoeiro, onde todo o
perfil é ambíguo, toda a sombra pode ser “interpretada” e todo o vulto pode ser
posto em dúvida. É no caldo de cultura da ignorância, da dúvida, das impressões
subjetivas (“eu não acho”, “para mim é...”) e do relativismo (“nada é
verdadeiro, tudo é relativo”) que o diabo cria cuidadosamente a sua filha
predileta, a mentira. Tudo na neblina, nada na luz clara, diáfana, precisa,
pois esse é o campo da Verdade. Por isso, Satanás não se cansa de sussurrar,
com ar de sapiência: – “Tudo pode ser verdade, porque cada qual faz a «sua»
verdade”. Na realidade, dizer que tudo é verdade é exatamente a mesma coisa que
dizer que nada é verdade ou que não existe nenhuma “verdade verdadeira”.
A MENTIRA DO “MUNDO”
A ESTALAGEM DO MUNDO
O escritor
francês Ernest Hello, ardente paladino da Verdade, compara o mundo à estalagem
de Belém, que na noite de Natal fechou as suas portas à Sagrada Família: porque
não havia lugar para eles na hospedaria, como registra laconicamente São
Lucas (Lc 2, 7).
Não havia
lugar para eles. Para todos os outros, sempre se achava um canto ou se
abria um espaço. Na “estalagem do mundo” há vaga para todas as mentiras, ainda
que sejam contraditórias entre si; existe um respeitoso cantinho para todos os
falsos deuses, mesmo que sejam inimigos. Só não há lugar para a Verdade, para
Cristo.
É claro que
Hello não fala aqui do mundo como obra de Deus – que reflete a beleza e a
bondade do seu Criador, e por isso deve ser amado –, mas no sentido que
freqüentemente o Novo Testamento dá à palavra mundo. Com este nome,
designa-se tudo aquilo que, no mundo, se opõe a Deus, e concretamente a massa
de homens e mulheres que se erigiram a si mesmos em seu próprio deus,
subtraindo-se ao domínio santo do Deus único. Trata-se daquela grande parte da
humanidade que tem como ídolos – como os únicos deuses pelos quais se deixa
dominar e aos quais serve – os do egoísmo: o poder e a glória, o dinheiro e a
vaidade, o interesse e o prazer. O mundo é o reino do pecado.
Falando desse
mundo, São João, o Apóstolo do amor extasiado e da fé invencível, diz
categoricamente: Sabemos que o mundo todo jaz sob o poder do Maligno (1
Jo 5, 19). E, com a mesma rotunda nitidez, na sua primeira Carta, deixa
estampada esta frase: Não ameis o mundo nem as coisas do mundo [...], porque
tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência
[ambiciosa] dos olhos e orgulho da vida (1 Jo 2, 16).
Como
conseqüência lógica, esse mundo dominado pelo “pai da mentira” vive
mergulhado na mentira, que é a sua respiração e o seu clima.
Voltemos agora
a Hello, e deixemos-lhe a palavra. Vale a pena ouvi-lo longamente. O que ele
escreve é tão sincero, tão extraordinariamente verídico, que parece a cada
passo descobrir-nos o que no fundo todos já víamos, sem acabarmos de o
perceber.
A CONFRATERNIZAÇÃO DOS
FALSOS DEUSES
Antes da
vinda de Cristo, no Panteon, na “hospedaria do mundo”, convivia uma multidão de
ídolos, inimigos entre si. Contudo, dentro da estalagem, “eles se espremiam sem
se combater, apertavam-se sem se machucar e acotovelavam-se sem se incomodar. A
razão disso é que estavam de acordo entre eles. Mas quando nasceu o Sol,
procedente de Belém, a gritaria foi geral. Os ídolos, que dormiam em sua paz,
acordaram para travar combate: todos eles reconheceram o inimigo comum
[Cristo], e foi possível então perceber por que não se haviam combatido uns aos
outros. O segredo da sua calma estava na sua cumplicidade”.
“Eis alguém –
continua Hello – que adora um boi, e outro que adora uma couve. Esses dois
homens não brigarão. Sem inconveniente algum, o adorador do boi adorará também
um pouquinho a couve, para agradar; e o adorador da couve não recusará ao boi
algumas genuflexões. Um misterioso acordo parece pairar sobre a imensa mentira
e dizer aos homens que, se essa mentira é multiforme, não há motivo para
preocupar-se por tão pouco: pois trata-se sempre da mesma mentira. A
idolatria pode mudar de aspecto e de caráter; mas ela tranqüiliza o idólatra
porque, através de todos os objetos adorados, mostra sempre a mesma face: Sou
eu mesma!”
Sobre o comum
denominador da falsidade, as mentiras do mundo se entendem. O ecumenismo mais
fácil é o ecumenismo das mentiras. Só ficam sobressaltadas e empunham as armas
quando a Verdade bate à sua porta. Então Herodes persegue o Menino, então a opinião
do mundo se arrepia e experimenta a necessidade de atacá-Lo por todos os meios,
de desprestigiá-Lo – a Ele e à sua Igreja – com todas as calúnias, de
achincalhá-Lo com toda a fúria. Um exemplo bem recente disso foi a reação de
alguns setores da opinião pública do mundo contra a Encíclica O
esplendor da Verdade de João Paulo II.
Mas Ernest
Hello não terminou ainda, e é importante escutá-lo até o final. O mundo,
dir-nos-á, não tem na sua hospedaria lugar algum para Cristo, mas de vez em
quando sente a necessidade de admitir na estalagem alguns fragmentos da
Verdade, para dar com eles maior prestígio às suas mentiras. Mais de uma vez,
com efeito, cristãos de boa fé se têm admirado de que certos meios de
comunicação social, conhecidos por suas posições anticatólicas, acolham com
destaque e até glosem elogiosamente algum pronunciamento do Papa ou algum
critério moral tipicamente cristão. Hello tem algo a dizer a esse respeito:
“Quando o
mundo diz a verdade, julga estar exprimindo uma opinião como qualquer outra; e
quer que essa verdade esteja rodeada de mentiras e conviva harmoniosamente com
elas. Quer que a verdade fique desonrada por infames companhias e, quando já a
sujou a ponto de não ser mais possível reconhecê-la, então a tolera, porque já
se tornou uma mentira. E essa mentira é preciosa, porque acoberta as outras,
dá-lhes prestígio, toma-as sob a sua proteção, tira-lhes o que teriam de
excessivamente violento, cru, ostensivo. Essa verdade transformada em mentira
pelo tom, pelo contorno, pelo contexto, essa verdade acaba por confundir o bem
e o mal, e a gente do mundo então fica contente.
“Nada engana
com uma força e uma autoridade tão terrível como a verdade mal dita. Ela dá aos
erros que a envolvem um peso que tais erros jamais teriam por si mesmos.
Prestigia-os. A mistura de verdade e de erro produz, na boca do mundo, efeitos
desastrosos. Dá à verdade a aparência de erro, ao erro a aparência da verdade.
Faz com que o erro participe do respeito que é devido à verdade”[NOTA DE
RODAPÉ: Hello, Textes choisis, ed. Egloff, Fribourg, 1945, pág. 161 e
segs.].
Hello
escrevia em fins do século XIX. As suas palavras têm uma atualidade
estarrecedora nos fins do século XX. A cada dia são maiores as misturas com que
se compõem religiões, filosofias, superstições, cultos exóticos, “valores culturais”
e místicas esotéricas ou mágicas. Todos eles procuram aureolar-se com algumas
parcelas das verdades cristãs. Sincretismos, variegadas “sofias”, holismos,
espiritualismos, inaugurações de eras novas em novas constelações..., todos
procurando prestigiar-se com pitadas de Cristianismo deturpado.
O sortimento
de mentiras misturadas com cacos de verdade não tem fim. A ninguém se oculta
que o “mercado das religiões” está mais fartamente abastecido que nunca. Nas
suas prateleiras, cada qual pode encontrar alguma religião, mística
ou filosofia de vida a seu gosto, a que melhor combine as tolerâncias,
as fantasias, as consolações metapsíquicas, as facilidades e as tranqüilizações
baratas com o desejo do consumidor. Porque o que interessa ao mundo não
é a verdade, mas a aparência de verdade que aconchegue do modo
mais sutil e eficiente as paixões do egoísmo, que justifique e canonize a
bandalheira, que proporcione “elevação mística” à crua miséria humana, sem
obediência ao Deus vivo nem sacrifício amoroso.
A ÉGUA E O PREMATURO
A mentira do
mundo é também, especialmente na atualidade, uma imensa falsificação dos
conceitos sobre os valores da vida, que se pretende impor agressivamente
como lei obrigatória. Essa tergiversação da verdade sobre o bem pessoal e social
reivindica o direito de ser a única aceitável, e avança no ambiente com a força
de uma enxurrada. Muitos meios de comunicação, professores, sociólogos,
psicólogos, etc., a despejam em lares, escolas e consultórios. E um bom número
se deixa arrastar por ela.
Em janeiro de
1994, um importante jornal diário, não sem uma certa dose de regozijo, dedicou
duas reportagens, ilustradas com fotografias, ao drama da égua Luna.
Era uma vez –
ficou-se sabendo – uma formosa égua quarto-de-milha de crinas brancas e olhos
azuis. Eis senão quando um plebeu pangaré, ironicamente chamado Príncipe,
conseguiu um encontro furtivo com a puro-sangue, dele resultando o epicentro do
drama: um potrinho sem classe estava a caminho.
Quando se
soube que o dono da égua decidira abortar o indesejado potrinho sangue-sujo,
desfraldaram-se imediatamente as nobres bandeiras da defesa da vida animal. “A
União em Defesa do Cavalo e do Jegue – lê-se no jornal – pretende entrar hoje
com medida cautelar contra o proprietário de Luna para tentar impedir o aborto
do potro”. A presidente dessa entidade, que também preside à S.O.S Bicho, “anunciou
que vai basear a ação judicial no artigo 64 da lei das contravenções penais,
que proíbe submeter animais a tratamento cruel”.
Por sua vez,
o presidente da União Internacional Protetora dos Animais afirmou que, do ponto
de vista da ética veterinária, o aborto só pode ser feito se for para salvar a
égua ou o filhote[NOTA DE RODAPÉ: Cf. O Estado de S.Paulo, 14-I-1994,
pág. A14.].
Em todos os
casos, o termo empregado em defesa do potrinho foi a dura palavra “aborto”.
Ninguém usou, por exemplo, o eufemismo “interrupção da gravidez”, que parece
reservar-se somente aos seres humanos. Seres humanos? Vejamos.
No mesmo
jornal, e no mesmo dia em que se publicava uma das reportagens sobre o drama da
égua, eram reproduzidas palavras de uma figura política lamentando que os
prazos e modos de tramitação da revisão constitucional dificultassem a
legitimação do aborto na Carta Magna. A personalidade achou por bem, nessa ocasião,
informar o público de que o feto, antes de ter completado sete meses, não podia
ser considerado propriamente “ser humano”. Naturalmente, os motivos
justificativos do aborto – pelo menos até os três ou quatro meses –
pertenceriam à “consciência” ou à vontade da mãe, sem as restrições exigidas
para proteger a vida animal.
Após ler as
duas notícias, uma profunda sensação de mal-estar invadia o leitor medianamente
sensato. Era patente que estávamos, mais uma vez, diante da Mentira, da
maiúscula e mais absurda mentira. E, no entanto, muitos, com certeza, devem ter
achado tudo perfeitamente natural. A mentira do mundo consegue deformar
de tal modo as consciências, que se acha lógico punir seriamente quem maltratar
um mico-leão, enquanto se brada apoio total à chacina de milhões de seres
humanos indefesos, dentro do ventre materno.
Não era
desses, certamente, um meu amigo que, por aqueles dias, triste e bem-humorado
ao mesmo tempo, me dizia: – “Preciso urgentemente que me ajude a recuperar a
minha identidade. Nasci com menos de sete meses e, portanto, segundo a renomada
figura política, não vim ao mundo como «ser humano». Por outro lado, nenhum
S.O.S. Bicho se ocupou jamais de um «potrinho» gerado por um homem e uma
mulher, o que é o meu caso. Por favor, diga-me! Quem sou? Se não posso ser
considerado «humano» e não entro no catálogo dos «bichos», então não existo,
estou inteiramente desprotegido neste estranho mundo, onde prender uma capivara
é crime inafiançável, ao passo que matar um bebê é uma conquista dos direitos
humanos”.
Poderíamos
passar agora para a televisão. Na tela colorida, a figura bem maquiada de uma
conhecida psicóloga, num horário próprio para crianças, informa-nos com
expressão angelical que há três classes de sexualidade: a homossexual, a heterossexual
e a bissexual. Assim, tudo no mesmo nível, ou melhor, dando prioridade ao
homossexualismo. A heterossexualidade – isto é, a normal (pelo menos entre os
bichos) – era mencionada só no meio, de passagem, como se fosse coisa um tanto
vergonhosa. Mais uma vez nos vemos envolvidos, como por um nevoeiro denso, pela
mentira do mundo. Ora, essa e outras tantas enormes falsidades são
propaladas a toda a hora e de mil maneiras – em conferências, artigos, shows
musicais, telenovelas, etc. –, como uma enxurrada de esgoto que arrasa os
valores límpidos, os que elevam o indivíduo, defendem os valores
insubstituíveis da família e tornam digna e justa a vida social. Muitos estão
cansados de ver por toda a parte, no meio de um festival de hipocrisia, a
defesa apenas do direito ao falso, ao perverso, ao sujo e ao anormal.
Especialmente
penoso é ver mergulhar na mentira do mundo um bom número daqueles e
daquelas que, por vocação, têm a missão de difundir a verdade cristã. É
lamentável vê-los cair – como diria Maritain – de joelhos ante a grande farsa
do mundo, ansiosos por serem modernos, atualizados e aceitos.
Prostram-se diante do mundo, para que este lhes afague a cabeça como a um
cachorrinho. Então, acolhidos benevolamente pelo mundo, sentem-se
felizes.
Esses pobres
iludidos, em vez de iluminarem o mundo com a Verdade, deturpam-na para “adaptá-la”
ao Grande Circo do Mundo: quer se trate do dernier cri do mais novo ramo
da psiquiatria pansexualista, quer da dialética marxista – onde ainda estiver
na crista da onda –, quer de estranhas teorias sobre verdades substancialmente
mutantes conforme a “inculturação” e a cosmo-ecologia, no momento em que essas
idéias, quase sempre manipuladas como ferramentas pelas ideologias, estão nas
vitrines da moda. Assiste-se então ao deplorável espetáculo de pessoas chamadas
por Deus para serem portadoras da Luz, rebaixando-se para dizer ao mundo as
mentiras que o mundo está farto de dizer-se a si mesmo.
Não se deixar
envolver pela Grande Mentira – a dos falsos valores, a da propaganda, a das
modas, a do que “hoje em dia” todo o mundo pensa e faz – é um imenso desafio
para os cristãos, que devem estar bem conscientes de que precisam de muita
firmeza na fé e de muita fortaleza de caráter para serem autênticos, para serem
eles mesmos, para serem “diferentes”, e não se deixarem envolver pelas
aliciantes falsificações do mundo.
A LÍNGUA
MENTIROSA
HONRA À VERDADE
Após as
anteriores reflexões sobre a mentira do mundo, convém-nos focalizar
agora as mentiras, grandes e pequenas, da vida cotidiana.
Alguém, com
humor um tanto pessimista, dizia que a mentira é um esporte tão amplamente
praticado que bate de longe todos os demais e cada dia adquire técnicas e
requintes de maior quilate.
Opinião
semelhante era a do escritor que há anos deixou estampados estes comentários:
“Mente-se por
palavras, mente-se por atos, mente-se por atitudes, mente-se por escrito,
mente-se pelo silêncio, mente-se pelas curvaturas da espinha dorsal, mente-se
pelo olhar, mente-se nas ruas, nas vitrines, nos negócios, nas escolas, nas
assembléias, nas reuniões, mente-se despudoradamente”[NOTA DE RODAPÉ: Gladstone
Chaves de Melo, O reino da mentira, na revista A Ordem, vol.
XLIII, n. 6, junho, 1950.].
Uma repulsa
como esta, acre e um tanto exagerada, manifesta “em negativo” um sentimento que
está arraigado no fundo da alma de todos: o amor à verdade, o mal-estar que
causa ver a verdade ofendida. Poucas coisas nos revoltam tanto como sermos
vítimas de um engano, cair numa armadilha, sofrer uma fraude. A mentira dos outros
causa-nos repugnância (ainda que nem sempre, infelizmente, nos causem o mesmo
sentimento as nossas próprias mentiras).
E é natural
que isso aconteça, pois a mentira “é uma profanação da palavra que tem por
finalidade comunicar a outros a verdade conhecida. O propósito deliberado de
induzir o próximo em erro por palavras contrárias à verdade constitui uma falta
à justiça e à caridade” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2485).
Todo o ser
humano, criado à imagem e semelhança de Deus, que é Luz e Verdade, “tende
naturalmente para a verdade. É obrigado a honrá-la e testemunhá-la” (ibid.,
n. 2467).
Quem foge da
mentira, além de amar e honrar a verdade, honra e ama com isso o seu próximo. “Os
homens – diz São Tomás de Aquino – não poderiam viver juntos se não tivessem confiança
recíproca, quer dizer, se não manifestassem a verdade uns aos outros [...].
Um homem deve honestamente a um outro a manifestação da verdade” (cf. ibid.,
n. 2469). Um ambiente em que não se sabe que terreno se está pisando, em que é
preciso adivinhar sempre segundas intenções, em que só o esperto é que singra,
torna-se irrespirável, um verdadeiro inferno.
Daí a
importância que a doutrina cristã atribuiu, em todas as épocas, à virtude da
sinceridade ou veracidade, “que consiste em mostrar-se verdadeiro no
agir e no falar – como define o Catecismo –, guardando-se da
duplicidade, da simulação e da hipocrisia” (n. 2468). Esta bela virtude, que
Deus preceitua no oitavo mandamento da sua Lei – não levantar falso testemunho
nem mentir –, apresenta, como uma alta montanha, duas vertentes: “A
veracidade observa um justo meio entre o que deve ser expresso e o segredo que
deve ser guardado; implica a honestidade e a discrição” (ibid., n.
2469). Se falamos, falemos unicamente a verdade. Mas, quando o amor ou a
justiça assim o exigirem, protejamos então a verdade com o silêncio.
DESONRAR A VERDADE
A veracidade
é uma peça mestra da vida moral e do convívio humano. É lógico, por isso, que a
Bíblia afirme que o Senhor odeia a língua mentirosa (Prov 6, 17), e, em
geral, a duplicidade, a simulação e a hipocrisia. (cf. Ecli 5, 11; Sl 4, 3; Mt
23, 13 e segs.; Apoc 21, 27 e 22, 15).
A mentira é
muito mais do que um simples engano, ou um lapso do pensamento ou das palavras.
Pertence à sua essência um ingrediente perverso, que é a “intenção de
enganar”. Assim definia essa filha espúria da língua Santo Agostinho: “A
mentira consiste em dizer o que é falso com a intenção de enganar” (De
mendacio, 4, 5).
A língua
mentirosa quer deliberadamente despejar névoa escura na mente do próximo para
ocultar assim a verdade. Ainda uma vez, devemos lembrar-nos de que Cristo nos
diz que tudo o que sai da língua procede do coração. Mente-se sempre por
causa de algo.
“Há as
mentiras de conveniência, as mentiras diplomáticas, as mentiras
administrativas, as mentiras de defesa, as mentiras profissionais, as mentiras
engenhosas, as mentiras oficiais, as mentiras vitais”[NOTA DE RODAPÉ: G. Chaves
de Melo, op. cit., pág. 68.].
E, no bojo de
todas elas, está quase sempre:
– a covardia,
o medo de enfrentar a verdade, para não ter que arcar corajosamente com as suas
conseqüências ou para não precisar defendê-la;
– a vaidade,
que nos leva a mentir, enfeitando os acontecimentos e atuações, para sairmos
engrandecidos; ou a desculpar-nos das falhas, e até mesmo a fazer recair sobre
um inocente a responsabilidade das mesmas, a fim de não prejudicarmos a nossa “imagem”;
– o interesse
egoísta, pai de inúmeras mentiras, pois para o egoísta “vale tudo” quando
se trata de obter vantagens, estreitar relações convenientes, galgar posições,
lucrar nos negócios ou fugir aos deveres penosos.
Não existe –
não pode existir – uma fonte limpa de mentiras, e é por isso que a mentira
não se justifica jamais, por motivo algum. “A mentira é condenável pela sua
própria natureza [...]. O propósito deliberado de induzir o próximo em erro por
palavras contrárias à verdade constitui (já o lembrávamos acima) uma falta à
justiça e à caridade” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2485).
VARIAÇÕES SOBRE UM MESMO
TEMA
A mentira é
como a névoa. E, como a neblina, é mudadiça, variando constantemente os seus
formatos. Neste sentido, é clássica a distinção das três principais espécies de
mentiras.
Em primeiro
lugar, encontra-se – quase intocada pelo mal – a mentira jocosa. Como
indica o nome, é a mentira bem-humorada, proferida com a finalidade de brincar,
por divertimento e sem intenção de ofender ninguém. Neste capítulo podem ser
incluídas tanto as lorotas de 1º de abril como a sorridente afirmação da velha
senhora de que tem pouco mais de quarenta anos.
Dizíamos que
é uma mentira praticamente inocente, ainda que as brincadeiras possam proceder,
às vezes, de sentimentos muito maldosos, e constituir por isso um pecado, até
mesmo grave, contra a caridade: por exemplo, se se mente brincando para
humilhar em público, ridicularizando-a, uma pessoa ingênua, defeituosa ou pouco
inteligente.
Mas, se não
existe essa conotação maldosa, essas mentiras, ainda que literalmente digam “o
que é falso”, não mentem, porque nem pretendem nem conseguem “induzir em
erro” ninguém. Portanto, não constituem pecado algum.
Numa segunda
categoria enquadram-se as mentiras oficiosas. O nome é clássico, na
teologia moral, para designar a mentira “que tende a favorecer uma pessoa,
grupo ou ideologia”[NOTA DE RODAPÉ: R. Sada e A. Monroy, Curso de Teologia
Moral, Ed. Rei dos Livros, Lisboa, 1989, pág. 232.]. É a mentira proferida
em proveito próprio.
Essa é uma
das primeiras mentiras que aprendemos em crianças: “Não fui eu que fiz”, “não
tinha ouvido”, “perdi o dinheiro que o papai me deu” (gasto no carrinho da
esquina, em pirulitos). As mais comuns, dentre as desta categoria, são as
mentiras forjadas para evitar um castigo, um desgosto, um dever custoso, ou
para furtar-se a um favor ou a um serviço que não temos vontade de prestar. Aí
entra a série interminável de falsas “explicações” e “desculpas” que a nossa
fraqueza nos leva a dizer para evitar maus bocados: “Não tive tempo”, “perdi o
ônibus”, “fiquei doente” (com atestado médico anexo, tão falso quanto a
escusa), “o chefe pediu-me que ficasse trabalhando até tarde”... E mais a
prática estudantil da cola (que é mentirosa quando não se estudou e,
portanto, se finge um saber que não se tem), bem como tantas outras mentiras e
mentirinhas lançadas como névoa perfumada para “ficar bem”.
Este tipo de
enganos são verdadeiras mentiras, e por isso mesmo constituem sempre uma
falta, um pecado, ainda que geralmente – como lembra o Catecismo da
Igreja – não passem de pecado venial (n. 2484). Contudo, podem revestir-se de
uma gravidade maior, e até muito grande, em diversas ocasiões: basta pensar no
filho – mentiroso quanto à assistência às aulas – que defrauda a confiança e o
sacrifício investido nele pelos pais; ou, num outro terreno, na força da
mentira empregada na propaganda e nas pesquisas de opinião
dirigidas a aliciar, com falsidade, o favor do público, mesmo que com essas
mentiras não se chegue a causar um sério prejuízo aos iludidos, nem se
prejudiquem terceiros, coisa de resto difícil de imaginar.
Mas, falando
em prejuízos, já estamos entrando no campo do terceiro tipo de mentira, o pior
deles: a mentira danosa ou prejudicial. O seu próprio nome a
explica: mente-se, nestes casos, querendo causar um dano ou um prejuízo a
alguém; ou então – mesmo que não haja intenção de prejudicar –, quando se sabe
ou, pelo menos, se prevê que a mentira poderá causar um dano.
ENGANOS E SÍMBOLOS
Não é preciso
espremer muito os miolos para lembrar as inúmeras faces desta mentira: já
víamos antes o caráter hediondo da calúnia, mentira danosa que conspurca
reputações e chega a destruir vidas; poderíamos continuar a lista incluindo
nela as fraudes nos negócios, as concorrências desleais, as licitações com
cartas marcadas, as “recomendações” (“pistolões”) que guindam incapazes a
funções de que ficam excluídos os que as merecem; as mentiras políticas ou
administrativas de todo o gênero, que causam enormes danos à nação, e com
freqüência aos mais desprotegidos; as desorientações morais de um mau
conselheiro espiritual; as mentiras nos termos ou nos dados dos contratos; a
ocultação de defeitos na máquina vendida; as falsificações, as vigarices e
trapaças de toda a espécie.
Uma especial
menção merece, neste capítulo, uma falácia, infelizmente prejudicial para
muitíssimas pessoas. Refiro-me à insistente, martelante, diária propaganda
sobre o uso do preservativo como o meio mais “seguro” para evitar a
contaminação da Aids. As autoridades sanitárias responsáveis sabem bem,
com dados que falam por si – e sobre os quais alguns não têm deixado de alertar
– que esse meio se revela ineficaz para os fins pretendidos em, no mínimo, 30 a
40% dos casos. Isso significa que a propaganda do preservativo como panacéia
para evitar esse flagelo – deixando de lado o caráter intrinsecamente ilícito
desse meio – tem uma forte dose de mentira e é paradoxalmente uma das causas de
que a doença se propague cada vez mais. Na realidade, um honesto posicionamento
deveria levar a dizer, sem rebuços, que a verdadeira solução é a
educação para a castidade e para a fidelidade conjugal.
Encerrando as
considerações sobre a mentira danosa, convém recordar ainda dois
princípios, referidos também pelo Catecismo, que toda a consciência
cristã deveria gravar a fogo e meditar: a mentira “torna-se pecado mortal
quando fere gravemente as virtudes da justiça e da caridade [...]. A
culpabilidade é maior quando a intenção de enganar acarreta o risco de
conseqüências funestas para aqueles que são desviados da verdade” (ns. 2484,
2485). E ainda, “toda falta cometida contra a justiça e a verdade impõe o dever
de reparar” (n. 2487). Não pode ser aceito aos olhos de Deus o pretenso
arrependimento acerca de uma mentira, quando não se está disposto a reparar
quanto antes e por todos os meios viáveis as suas conseqüências nocivas.
Uma vez
terminado o comentário sobre as três espécies de mentira, parece-nos ouvir a
voz de um leitor ou leitora que pergunta:
– E a mentira
social? Não vai falar dela?
A esse
hipotético leitor responderíamos que a expressão “mentira social” é muito
ambígua. Pode ser, então, que ele tenha a amabilidade de nos esclarecer:
– Ora, eu me
refiro sobretudo à mentira telefônica e à mentira gentil, que não
entraram na sua classificação. Por exemplo, ao caso do empresário que manda a
secretária dizer que “está em reunião”, simplesmente porque está ocupado... Ou
à senhora que diz que o marido “não está aqui no momento” quando liga um
maçador inoportuno... Ou a qualquer um de nós, que, quando vê uma criancinha
horrível, diz à mãe: “Que gracinha, é linda!”, e igualmente, após um almoço de
gosto indefinível mas não “inesquecível”, diz à anfitriã: “Estava uma delícia”...
Realmente,
não se pode ser mais claro. Acontece, porém, que a resposta ao desconcerto do
ou da perguntante também é clara. Víamos acima que a linguagem é simbólica, que
a palavra é “símbolo” que exprime algo que se quer comunicar. Quando o símbolo
é equívoco ou “induz em erro”, temos uma mentira. Quando é inequívoco, porque
já se tornou uma forma de linguagem habitual, empregada constantemente para
evitar expressões que poderiam ser grosseiras, ofensivas ou mal interpretadas,
já não induz em erro, porque o “símbolo” é transparente para todos. Quer dizer
que, nestes casos, não há “mentira”, não existe a falta moral chamada “mentira”.
Por isso, a “mentira social e gentil” não entra nas classificações.
A VERDADE
RESGUARDADA
A SEGUNDA VERTENTE
Víamos antes
que a veracidade é como uma alta montanha com duas vertentes. A primeira
– a verdade “que deve ser expressa” – acaba de ser contemplada. Passemos agora
para a segunda: “o segredo que deve ser guardado”, a “discrição” (Catecismo
da Igreja Católica, n. 2469).
Há um direito
à verdade e há um direito ao silêncio. Há o dever de falar e há o dever de
calar-se. Assim como muitas vezes a justiça e o amor exigem que a verdade seja
manifestada ao próximo, em outras ocasiões mandam guardar silêncio para
resguardar a verdade.
É oportuno, a
este respeito, recordar um aspecto já citado dos ensinamentos do Catecismo
sobre a mentira: “Mentir é induzir em erro aquele que tem o direito de
conhecer a verdade” (n. 2483).
Sublinhamos
de propósito a expressão “tem o direito”, porque ela nos dá a chave desta
segunda vertente. “O direito à comunicação da verdade não é
incondicional. Cada um deve conformar a sua vida com o preceito evangélico do
amor fraterno. Este requer, nas situações concretas, que se avalie se é
conveniente ou não revelar a verdade àquele que a pede” (ibid., n.
2488).
– É sempre
oportuno dizer a um doente o grau de gravidade do seu mal?
– Às vezes,
não é.
– Mas não é
uma grave omissão esconder de um moribundo a situação crítica em que se
encontra, impedindo-o de se preparar com a recepção dos últimos Sacramentos?
– Sem dúvida,
é injustificável.
– Um marido
deve deixar aflita a esposa narrando todos os detalhes da crise profissional
que o ameaça, se não há necessidade ou uma clara conveniência? Não será mais
caridoso evitar-lhe, serenamente e com um sorriso, um sofrimento perfeitamente
inútil?
– Geralmente,
sim.
– Pelo
contrário, não deverá falar quando for preciso viver uma especial confiança e
apoio mútuos, a fim de enfrentarem juntos a adversidade?
– Certamente,
deverá.
Os casos são
inúmeros, mas a “regra de ouro” é sempre a mesma: a caridade, a norma que
Cristo nos ensinou: Tudo o que quiserdes que os homens vos façam, fazei-o
vós a eles (Mt 7, 12).
O DIREITO AO SILÊNCIO
Vivemos num
mundo em que tudo se ventila publicamente. Parece que todos têm o direito de
perguntar seja o que for da vida das pessoas, e que estas têm o dever de falar.
Caso contrário, ficarão sob suspeita. Enfia-se o microfone e a câmera de
televisão, sem que lhes tenham aberto as portas, na intimidade dos lares ou dos
ambientes profissionais e religiosos. Propõem-se questionários, como condição
prévia para seguir cursos simples, que mais parecem um inquérito policial sobre
a vida particular. O mexerico é outro alto-falante, useiro e vezeiro, que
espalha em público – entre amigos, parentes ou colegas – o que é de domínio
estritamente privado.
Um simples
senso de decência indica-nos que isto não está certo. E com razão. É um
princípio incontrovertível da moral que todo o homem tem o direito de manter
reservados aqueles aspectos da vida, sobretudo da vida privada, sobre os quais
os outros – perguntadores ou não perguntadores – não têm título algum; e tem
também o direito de calar-se sobre todas as coisas particulares cuja divulgação
“não serviria em nada ao bem comum e, pelo contrário, poderia prejudicar
legítimos interesses pessoais, familiares ou de terceiros”[NOTA DE RODAPÉ: Cf.
R. Sada e A. Monroy, op. cit., pág. 233.].
É muito justa
a indignação que provoca a intromissão inquisitiva de indivíduos e de entidades
na vida privada (sem excluir dessas entidades o Estado), e especialmente a da mídia.
Uma indignação que expressava, com palavras francas e límpidas, o Bem-aventurado
Josemaría Escrivá, comentando a curiosidade maligna dos fariseus (cf. Jo 9, 13
e segs.), que se recusavam a acreditar na explicação de um cego sobre a cura
operada nele por Cristo: “Não custaria nenhum trabalho apontar em nossa época
casos dessa curiosidade agressiva, que leva a indagar morbidamente da vida
privada dos outros. Um mínimo senso de justiça exige que, mesmo na investigação
de um presumível delito, se proceda com cautela e moderação, sem tomar por
certo o que é apenas uma possibilidade [...].
“Perante os
mercadores da suspeita, que dão a impressão de organizarem um tráfico da
intimidade, é preciso defender a dignidade de cada pessoa, seu direito ao
silêncio. Costumam estar de acordo nesta defesa todos os homens honrados, sejam
ou não cristãos, porque está em jogo um valor comum: a legítima decisão de cada
qual de ser como é, de não se exibir, de conservar em justa e pudica reserva as
suas alegrias, as suas penas e dores de família; e sobretudo de praticar o bem
sem espetáculo, de ajudar os necessitados por puro amor, sem obrigação de
publicar essas tarefas a serviço dos outros e, muito menos, de pôr a descoberto
a intimidade da alma perante o olhar indiscreto e oblíquo de gente que nada
sabe nem deseja saber da vida interior, a não ser para zombar impiamente. Mas,
como é difícil vermo-nos livres dessa agressividade xereta! Multiplicaram-se os
métodos para não deixar o homem em paz”[NOTA DE RODAPÉ: É Cristo que passa,
n. 69.]...
É difícil ler
estas palavras sem concordar apaixonadamente com elas. Em todo o caso, não nos
esqueçamos de que devemos começar aplicando-as a nós mesmos e às nossas
curiosidades pessoais. Porventura temos a consciência clara de que constitui
uma falta moral, um pecado, abrir ou ler cartas alheias, ou agendas, ou diários
íntimos, sem a permissão da pessoa interessada? Ou revistar móveis e gavetas?
Ou estar ocultamente à escuta, ou espiar às escondidas por frestas, janelas ou
fechaduras? Ou pressionar alguém, atemorizando-o ou ameaçando-o de qualquer
forma, para nos contar algo que não temos o menor direito de saber? Cada qual
deveria fazer aqui o seu exame de consciência.
Mas, voltando
à “agressividade xereta” de que falávamos, é óbvio que a pessoa importunada por
essas injustas intromissões tem todo o direito de se defender delas. Pode
fazê-lo legitimamente de duas maneiras:
– pela negativa,
recusando-se a falar, como é o caso de quem responde aos impertinentes que “nada
tem a dizer”, “nada a declarar”.
– pela evasiva,
que é perfeitamente lícita quando as circunstâncias, a educação, etc., não
permitem uma simples negativa. É claro que a evasiva não pode ser uma mentira –
isto é, dizer algo contrário à realidade –, dado que um fim bom não
justifica o emprego de um meio errado, como é mentir; mas pode ser, e assim
será normalmente, uma verdade parcial, que, sem enganar o ouvinte, o
informa de uma parte do que aconteceu e cobre com um véu de silêncio a outra
parte, que o interlocutor enxerido não tem nenhum direito de conhecer. Vamos
imaginar um pai que teve de se ausentar devido a problemas sérios de uma filha
evadida do lar, problemas que não poderia divulgar sem difamá-la. Ao
perguntador impertinente pode responder com “verdades parciais”, que não
encerram falsidade, mas não revelam o que deve ser resguardado, como por exemplo:
“Tirei umas férias” (de fato tirou férias do trabalho habitual), ou “viajei a
negócios”, pois a expressão, em bom vernáculo, aplica-se também a assuntos
familiares.
Diz-se que o
silêncio é de ouro, e há ocasiões em que é mais do que ouro, porque é amor e
justiça. Vamos considerar, ainda, algumas ocasiões em que a virtude consiste em
permanecer calado.
O DEVER DO SILÊNCIO
Se, em muitos
casos, há o direito de calar-se, em outros existe o dever, a
autêntica obrigação de calar-se.
Considerávamos
atrás o direito que todos temos de defender a nossa intimidade ante os olhos e
ouvidos estranhos. A esse direito, corresponde também um dever.
Com efeito, toda a pessoa que tiver conhecimento – quer por ter recebido uma
confidência, quer por ter ficado a saber incidentalmente – de assuntos ou
problemas pertencentes à intimidade de outras pessoas ou à vida interna de
entidades (por exemplo, de uma empresa, de uma associação, etc.), tem a obrigação
de guardar segredo a esse respeito. A moral católica chama a esse dever “segredo
natural”, que afeta tudo aquilo que exige reserva por sua própria natureza, ou
seja, tudo o que pertence apenas à esfera privada e não está destinado à
publicidade.
Tal é o caso
de quem soube – por ter ouvido involuntariamente uma conversa familiar – que
uma moça está para desmanchar o casamento poucas semanas antes da cerimônia; ou
de quem recebeu a confidência de um amigo sobre uma grande perda de dinheiro
numa operação infeliz. Não se pode fazer uso desses conhecimentos. Deve-se
respeitar a intimidade, a privacidade dos outros, como coisa sagrada.
A revelação
de tais segredos constitui também uma falta contra as virtudes da justiça
e da caridade, e se houve promessa de permeio – promessa de guardar o
segredo, antes ou depois de conhecê-lo –, peca-se também contra a fidelidade,
que é a bela virtude que leva a manter os compromissos. Infelizmente, não falta
certa razão aos que, de uma forma um tanto cínica, afirmam: – “Você quer
divulgar rápida e amplamente alguma coisa? É fácil. Conte-a a alguém,
fazendo-lhe prometer que guardará segredo! Nada tem tanto poder de difusão como
um bom segredo!”
É patente que
o dever do silêncio é especialmente grave quando entramos no âmbito do segredo
profissional. O médico, a enfermeira, o advogado, o psicólogo, o militar, o
engenheiro que trabalha num projeto sigiloso, etc., recebem informações que só
lhes são transmitidas contando com o compromisso prévio, expresso ou tácito, de
guardar a mais estrita reserva sobre os dados ou fatos que vierem a conhecer.
Se um profissional se tornasse amplificador de intimidades confidenciadas, ou
levianamente indiscreto em matérias científicas ou industriais, a vida em
sociedade tornar-se-ia impossível. Mais uma vez vêm à tona as palavras de São
Tomás de Aquino já citadas, que neste contexto ganham um vigor novo: “Os homens
não poderiam viver juntos se não tivessem confiança recíproca”[NOTA DE
RODAPÉ: Suma Teológica, II-II, 109, 3 ad 1.].
Só em casos
excepcionais, que a doutrina católica especifica, é que poderiam ser revelados
os “segredos profissionais” ou as “confidências feitas sob sigilo”.
Concretamente, nos casos “em que a retenção dos segredos causasse àquele que os
confia, àquele que os recebe ou a um terceiro prejuízos muito mais graves e
somente evitáveis pela divulgação da verdade” (Catecismo da Igreja Católica,
n. 2491).
É importante
repisar as duas condições que devem concorrer, simultaneamente, para
justificar a revelação desses segredos:
– que manter
o segredo cause prejuízos muito mais graves do que guardá-lo, quer àquele
que o confiou, quer àquele que o recebeu ou a um terceiro. Neste sentido, é
sabido que um médico tem a obrigação de informar as autoridades competentes
sobre a doença contagiosa de um paciente – mesmo que este não a queira revelar –,
se esse silêncio acoberta um risco objetivo de contágio de outras pessoas ou de
epidemia; e igualmente um funcionário pode e deve inclusive advertir um seu
colega de uma tramóia injusta armada na empresa contra ele, ainda que lhe tenha
sido contada com a condição prévia de guardar segredo;
– ao mesmo
tempo, que esses prejuízos só possam ser evitados pela divulgação da
verdade. Havendo outro meio, o segredo deve ser mantido.
Somente há
uma exceção ao que se acaba de expor, um único caso em que jamais, por motivo
algum, o segredo pode ser revelado: o segredo do Sacramento da Confissão. “O sigilo
do sacramento da Reconciliação – diz o Catecismo – é sagrado e não
pode ser traído sob nenhum pretexto” (n. 2490). Na Confissão, o sacerdote é
instrumento de Deus que somente em nome de Deus e no âmbito da responsabilidade
íntima de cada alma para com Deus ouve e absolve. Estamos, pois, diante de um
terreno sagrado, que pertence exclusivamente a Deus. Aí deve imperar
absolutamente o silêncio.
TOCHAS NA
ESCURIDÃO
Como estivemos
vendo nesta última parte, a nossa língua está freqüentemente em perigo de ficar
contaminada pela mentira e pela indiscrição, e é por isso que precisamos
manter-nos vigilantes, zelando pela veracidade e prudência das nossas palavras.
Mas o ideal
do cristão não se reduz, de modo algum, a manter a língua limpa dessas
manchas. Vai muito além. Sendo a língua instrumento da palavra, deve ser na
vida do cristão, de modo privilegiado, a ponte por onde passa a Palavra da
Verdade, que é a mensagem de Cristo. Na nossa língua, por isso, deveria
fulgurar muitas vezes – como luz para as inteligências e os corações dos homens
– o clarão da verdade salvadora de Jesus.
É nesta
perspectiva e perante esta responsabilidade que Cristo situa os que Ele escolhe
– todos os cristãos, pois afinal todos são os seus eleitos! (cf. Col 3, 12) –,
ao mesmo tempo que os envia, em seu nome, para que difundam no mundo a
palavra da verdade (Ef 1, 13): Vós sois a luz do mundo [...]. Brilhe
a vossa luz diante dos homens (Mt 5, 14.16).
Nesta nossa
terra, parece que as trevas se adensam. O que aconteceu, quando da vinda de
Cristo, repete-se novamente de maneira crítica: A luz resplandece nas
trevas, e as trevas não a compreendem [...] Estava no mundo, e o mundo
não o conheceu (cf. Jo 1, 9-10).
Mas, apesar
da sua rejeição e da sua indiferença, o mundo sofre intimamente – mesmo sem
reconhecê-lo – da falta da Verdade, da carência da autêntica, da imutável, da
luminosa Verdade. O mundo sente-se impotente – com desespero, tristeza e raiva –
perante o seu imenso e crescente vazio. Não mais conseguem embromá-lo as
experiências já gastas do desenfreio do sexo, nem as das empoladas fantasias
esotéricas, nem as vaporosas ilusões mágicas. A falência cada vez maior de
horizontes profundos e de esperanças seguras faz com que se tenha podido
aplicar aos nossos dias esta triste alcunha: “o reino da depressão”.
É uma
incontrovertível realidade que o mundo, em todos os seus devaneios, em todas as
suas inúteis procuras – como num errático voltear de pião –, em toda a sua
vertiginosa desorientação, está a lançar um clamor cego, uma súplica surda, um
pedido abafado, com as mesmas palavras de Goethe no leito de morte: – “Luz,
mais luz!” E é dos cristãos, dos que – segundo escrevia São Paulo – vivem da
fé que opera pelo amor (Gal 5, 6), que o mundo tem maior e mais urgente
necessidade, pois só por meio daqueles em quem Cristo vive (cf. Gal 2, 20) é
que poderá “ver” – como um cego que acorda –, e achará a claridade por que
anseia, a Luz verdadeira que, vindo ao mundo ilumina todo homem (Jo 1,
9).
Um antigo
escritor, meditando sobre um Salmo que compara Cristo ao sol a cuja luz e calor
nada se furta (Sl 19, 7), diz que os discípulos de Jesus, “iluminados por Ele,
verdadeira e eterna luz, tornam-se também eles luz nas trevas. Sendo Ele o sol
da justiça, não sem razão dá aos discípulos o nome de luz do mundo; porque por
meio deles, quais raios resplandecentes, espalha pelo mundo inteiro a luz do
seu conhecimento. E assim desaparecem dos corações humanos as trevas do erro,
diante da luz da verdade”[NOTA DE RODAPÉ: São Cromácio, Tratados sobre o
Evangelho de São Mateus, 5, 1.].
Este belo
comentário leva-nos a pensar, pela última vez, na frase de Cristo que tem sido,
nestas páginas, um constante contraponto: A língua fala daquilo de que o
coração está cheio. Sim, o sol brilha e ilumina porque arde, porque está
incandescente. Da mesma forma, o cristão poderá transmitir através da palavra e
da vida, sinceramente, a Verdade de Deus se estiver pessoalmente iluminado e
aceso por essa mesma Verdade. Só então é que as suas palavras e o seu exemplo
serão tochas na escuridão, pontos de luz que manterão no mundo – como gostava
de dizer Mons. Escrivá – a sinalização divina.
Conhecer e
amar a Verdade! Viver na Verdade! Fazer da língua um facho portador da Verdade!
Eis a missão e a responsabilidade do cristão.
Se vivermos
da fé, da infinita alegria da fé, procuraremos, como lembra o Catecismo,
“as ocasiões para anunciar a Cristo pela palavra, seja aos descrentes, seja aos
fiéis” (n. 905). Mas sem perder jamais de vista que toda e qualquer palavra
cristã (palavra oportuna de instrução ou de esclarecimento, palavra de
conselho, resposta afetuosa a dúvidas e perplexidades, confidência sobre as
próprias convicções) ficará sendo apenas uma inconsistente miragem se não
brotar do fundo da “Vida vivida”, da Fé feita “carne da própria carne”.
Justamente
porque o mundo precisa da Verdade, necessita também, com sede ansiosa, do “exemplo
eloqüente e fascinante de uma vida totalmente transfigurada pelo esplendor da
verdade [...]. E é particularmente a vida de santidade, resplandecente
em tantos membros do Povo de Deus, humildes e com freqüência despercebidos aos
olhos dos homens, que constitui o caminho mais simples e cativante, onde é
permitido perceber imediatamente a beleza da verdade, a força libertadora do
amor de Deus”[NOTA DE RODAPÉ: João Paulo II: Encíclica O Esplendor da
Verdade, ns. 93 e 107.].
São Pedro, na
sua segunda Epístola, compara a palavra de Verdade dos Profetas a uma
lâmpada que brilha em um lugar escuro, até que desponte o dia e a estrela da
manhã se levante em vossos corações (2 Pe 1, 19). É uma belíssima
comparação, que deveria poder aplicar-se à nossa língua. Se as palavras
nos nascessem do coração incandescentes pela Fé, chegariam aos outros fulgurantes
de Esperança e seriam como a estrela da manhã que, nas mais densas trevas do
mundo, anuncia o alvorecer de um novo dia, do dia da descoberta maravilhada e
do encontro inefável com Cristo!
Esta radiante
perspectiva era a que o Bem-aventurado Josemaría Escrivá apresentava, como um
ideal de vida, a inúmeros cristãos – homens e mulheres comuns – apaixonados
pela Verdade, e expressava com umas palavras que ficam como fecho final destas
páginas:
– “Filhos de
Deus. – Portadores da única chama capaz de iluminar os caminhos terrenos das
almas, do único fulgor em que nunca se poderão dar escuridões, penumbras ou
sombras.
– “O Senhor
serve-se de nós como tochas, para que essa luz ilumine... De nós depende que
muitos não permaneçam nas trevas, mas andem por caminhos que levam até à vida
eterna”[NOTA DE RODAPÉ: Forja, n. 1.].
ÍNDICE
PENAS E GLÓRIAS DA LÍNGUA.. ....................... 3
Como uma charada........... ....................... 3
Metáforas............. ....................... 4
A boca e o coração........... ....................... 6
PALAVRA E AMOR
A PONTE DAS PALAVRAS............... ................. 9
Dois versos
de uma canção...... ........ 9
Língua de
cinza ........ 12
Do seio do
silêncio...... ........ 14
JUÍZOS E PALAVRAS... ....................... 18
A propósito de ladrões............ ....................... 18
O mau juízo acende a má língua.............. ....................... 20
O menino em campo verde... ....................... 23
LÍNGUAS COMO ESPADAS...... ....................... 26
Alargando feridas....................... ....................... 26
Quando calar, quando falar?.. ....................... 29
O dente da cobra....................... ....................... 33
PALAVRA E VERDADE
A PONTE DA VERDADE..... ....................... 37
A MENTIRA DO “MUNDO” .... ....................... 40
A estalagem
do mundo..... ..... 40
A
confraternização dos falsos deuses ..... 41
A égua e o
prematuro ..... 44
A LÍNGUA MENTIROSA ....................... 49
Honra à
verdade......... ........... 49
Desonrar a
verdade......... ........... 51
Variações
sobre um mesmo tema.... ........... 53
Enganos e símbolos......... ........... 55
A VERDADE RESGUARDADA................. ....................... 58
A segunda
vertente........... ........... 58
O direito ao
silêncio ........... 59
O dever do
silêncio ........... 63
TOCHAS NA ESCURIDÃO. ....................... 66