FRANCISCO
FAUS
O VALOR DAS
DIFICULDADES
2ª edição
QUADRANTE
São Paulo
1995
Copyright ©
1989 QUADRANTE, Sociedade de Publicações Culturais
Capa
José C. Prado
Impressão
Paulus
Gráfica
Via Raposo
Tavares, km 18,5 – São Paulo – SP
Francisco
Faus é licenciado em Direito pela Universidade de Barcelona e Doutor em Direito
Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino de Roma. Ordenado sacerdote
em 1955, reside em São Paulo, onde exerce uma intensa atividade de atenção
espiritual entre estudantes universitários e profissionais. Autor de diversas
obras literárias, algumas delas premiadas, já publicou na coleção Temas
Cristãos, entre os títulos mais recentes, Lágrimas de Cristo, lágrimas dos
homens, A língua e A paciência.
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exclusivo em Portugal: REI DOS LIVROS,
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AS DIFICULDADES
DA VIDA
– Não é
fácil!
– Não é
mesmo!
Quem
pronunciou estas últimas palavras acabava de se aproximar de um grupo de
amigos. Nada ouvira da conversa mantida entre eles, a não ser apenas a última
frase: “Não é fácil!”... E, no entanto, mesmo sem saber de que estavam falando,
sentiu-se impelido como que instintivamente a concordar. Seja qual for o
assunto, não há dúvida de que, nesta vida, nada é fácil. Por isso, quem afirma
que alguma coisa “é difícil”, ou que “não está fácil”..., presume-se que, independentemente
da questão de que se trate, está com a razão.
“É difícil”.
Eis uma frase que é como uma locomotiva, à qual se pode atrelar, sem
inconveniente, qualquer vagão: é difícil... viver, trabalhar, ser honesto, ser
casado, ser solteiro...
Nada há na
vida, ou quase nada, que brote como a suave fonte do Parnasso. Custa conseguir
as coisas, custa conservá-las, custa não perdê-las, custa não estragá-las... As
dificuldades misturam-se com o chão de todos os caminhos. Se elas brilhassem na
noite, a estrada da vida ficaria toda pontilhada de luzes, como a longa pista
de um aeroporto.
Pois bem, uma
vez que se trata de uma companheira inseparável, vale a pena que nos
perguntemos: será que a dificuldade é uma circunstância puramente negativa? Não
terá nenhum sentido positivo, nenhum valor?
Ao longo
destas páginas, procuraremos alcançar um pouco de luz para essas interrogações.
Mas, mesmo antes de entrarmos em maiores aprofundamentos, já podemos adiantar
uma resposta geral às perguntas anteriores. Em si mesmas, as dificuldades não
são nem boas nem más. O seu valor e sentido dependem da atitude que se adotar
diante delas. Isto significa também – diga-se de passagem – que os homens podem
conhecer muito acerca de si mesmos simplesmente dedicando-se a observar qual é
a sua atitude perante as dificuldades. É um aspecto que mais adiante também
haveremos de considerar.
OBSTÁCULOS PARA O NOSSO
BEM?
É fácil
verificar que a palavra dificuldade aparece quase sempre, nos nossos
pensamentos ou nas nossas conversas, de braço dado com a queixa. Falamos das
dificuldades reclamando ou lamentando-nos; e a aquiescência de quem nos escuta
é uma solidariedade na lamentação; é a adesão incondicional de quem também tem
motivos para reclamar, porque experimenta na sua própria carne que “a vida não
é fácil”.
É evidente
que, se nos queixamos, é porque vemos as dificuldades como um mal. São
indesejadas e aparecem na nossa frente como pedras no meio do caminho, prontas
para retardar ou complicar a consecução de algum bem que nós desejamos.
Quase todos os bens que procuramos chocam-se com o empecilho das dificuldades:
elas brotam, como plantas malignas, para atrapalhar o bom ambiente do lar (“agora
que as coisas iam melhorando”), para entravar o bom andamento do trabalho (“isso
veio justamente agora, para prejudicar a minha promoção”), para transtornar as
boas expectativas de futuro...
Se
quiséssemos expressar em poucas palavras o que de fato nós pensamos a
respeito das dificuldades, provavelmente poderia servir-nos esta breve
definição: “Dificuldade é aquilo que surge como obstáculo para o nosso bem”.
Caso
concordemos com esta definição, vale a pena que prestemos um pouco de atenção
às reflexões que se seguem, porque é possível que, depois de as ponderarmos,
percebamos que a maioria das dificuldades nem surgem de repente – como
uma nuvem de verão –, nem são um verdadeiro obstáculo, nem atrapalham o
nosso verdadeiro bem.
O IDEAL E O BEM
Comecemos
pelo último ponto da definição que acabamos de transcrever. Qual é, na
realidade, o nosso verdadeiro bem? Não há dúvida de que o conceito que
temos do bem depende sempre do ideal que norteia a vida. Para um
materialista, que reduz a existência à avidez dos desejos, o bem é aquilo que
simplesmente o satisfaz, o que lhe dá prazer, mesmo que porventura acabe
redundando num mal ou num prejuízo para os outros. O egoísta sensual, por
exemplo, quer ser “feliz”, e coloca o seu bem na saciedade do egoísmo carnal,
ainda que para alcançá-lo tenha que deixar mulher e filhos em situação penosa.
Para o
cristão, pelo contrário, o bem – a verdadeira realização de si mesmo – não é a
satisfação do egoísmo, mas aquilo que a doutrina católica denomina com
precisão, desde tempos muito antigos, o bem da virtude. O amadurecimento
das virtudes, com a ajuda de Deus, é o que realiza o autêntico bem do
homem e, por isso mesmo, faz arraigar nele uma felicidade cada vez mais
profunda, cheia de paz e de plenitude interior.
Quando
conseguimos adquirir esta perspectiva cristã, as dificuldades começam a
encarar-se de uma maneira diferente da do egoísta. Já de início, podemos fazer
uma descoberta muito interessante, que a experiência se encarregará de
confirmar: a rigor, não existem dificuldades que, sozinhas, sem a nossa
cumplicidade, possam atrapalhar o bem da virtude, isto é, possam impedir a
consecução da caridade, da bondade, da paciência, da coragem, da fidelidade...,
daquilo que nos faz bons e nos dá, por isso mesmo, a alegria.
De certa
forma, poderíamos dizer que a virtude é invulnerável e, além disso, é “onívora”,
porque ela de tudo se alimenta e nada a prejudica, se nós não a prejudicarmos.
A mesma dificuldade que arrasa o egoísta fortalece o santo. Dizia Santo
Agostinho que “o mesmo fogo faz brilhar o ouro e fumegar a palha” 1.
Para aquele que cultua o conforto como finalidade de vida, uma doença
inesperada e grave constitui uma adversidade destrutiva e pode até produzir um
esmagamento brutal, que conduza ao desespero. Pelo contrário, para um homem que
crê firmemente em Deus, que pauta a sua vida pelo amor a Deus e o amor ao próximo,
essa mesma doença grave pode chegar a ser uma grande ajuda para o aprimoramento
do seu amor, um meio de purificação, crescimento e fecundidade.
Uma
dificuldade econômica pode introduzir numa família uma fumaça asfixiante, que
vai penetrando nos corações, desgastando a paciência e envenenando os nervos,
até transformar o convívio num inferno de apreensões, queixas e mau humor. Pelo
contrário, em outra família construída sobre o alicerce da fé e do amor, a
mesma dificuldade financeira pode ser o grande momento de união, em que todos
aceitam o sacrifício sem um lamento, apoiando-se mutuamente e procurando tornar
mais amável a vida dos outros, ao mesmo tempo que cobrem com um sorriso o seu
próprio sofrimento2.
Como se pode
então dizer que as dificuldades devem ser encaradas como um obstáculo para o
bem? Quando temos a consciência clara de que o verdadeiro bem se encontra
na virtude, percebemos que a virtude só pode ser minada pela nossa infidelidade
pessoal, e não pelas dificuldades. Ao contrário, estas podem nutri-la e fazê-la
crescer, de modo que, em vez de aparecerem como obstáculos, se mostrem como meios
para o autêntico bem moral.
AS DIFICULDADES E A
VIRTUDE
Começa, pois,
a ficar claro que é mais do que duvidosa essa definição de dificuldade que inicialmente
talvez nos parecesse exata: “aquilo que surge como obstáculo para o nosso bem”.
Acabamos de ver que nenhuma dificuldade pode tolher o bem da virtude.
Sendo assim,
deveríamos perguntar-nos, então, por que é que as dificuldades nos repugnam e
nos incomodam. Talvez seja um tanto rude o que vamos ver, mas parece-nos exato:
a dificuldade aborrece-nos não tanto porque obsta ao bem, mas exatamente pelo
contrário, porque o exige; não por ser um empecilho para a virtude, mas
por ser um entrave ao comodismo.
Se abrirmos
bem os olhos, descobriremos que cada uma das nossas dificuldades concretas
está a exigir a prática de alguma virtude concreta.
Suponhamos,
por exemplo, que estamos passando por uma situação de excesso de trabalho, que
nos faz sentir angustiados. O tempo de que dispomos parece insuficiente para
embutir nele tudo o que é preciso fazer. Essa circunstância, essa dificuldade,
está provavelmente marcando o momento em que se nos pede que pratiquemos melhor
do que nunca a virtude da ordem, que aprimoremos os ritmos de trabalho e a
intensidade com que aproveitamos o tempo.
O problema
pode ser uma dificuldade familiar. O filho, que até agora nunca tinha causado
preocupação, torna-se problemático: não quer estudar, revolta-se contra as
menores indicações dos pais, e há fortes suspeitas de que a turma com que anda
está envolvida em drogas... Esse problema, essa dificuldade, pode ser o sinal
forte de que é preciso que os pais se dêem mais ao filho, amadurecendo nas
virtudes que tornam eficaz a sua ajuda: mais compreensão, mais diálogo,
dedicação de tempo mais sacrificada.
Numa palavra,
as dificuldades são, pois, um apelo à virtude e, portanto, à auto-realização.
AS
DIFICULDADES SUBJETIVAS
Como se
depreende dos exemplos anteriormente mencionados, tínhamos em vista
dificuldades objetivas, isto é, situações independentes da nossa vontade, que
nos colocam perante a alternativa de sofrer um abalo ou enfrentar com coragem
um maior nível de exigência moral.
Mas haveria
muito que dizer, muito mesmo, sobre um outro tipo de dificuldades que nada têm
de objetivas: as dificuldades subjetivas, que vão sendo geradas, não
pelas circunstâncias ou pela má vontade alheia, mas pelo nosso próprio egoísmo,
pelo comodismo ou pela falta de generosidade.
Muitas vidas
tristes – cheias de lamentações – estão povoadas destas dificuldades que não
têm nenhuma base real e, no entanto, tornam as pessoas infelizes. Não pensemos
apenas nas dificuldades imaginárias das pessoas doentias, que prevêem o
negativo – “o possível de outras adversidades”, diria Guimarães Rosa3
– mesmo antes de terem começado a agir. Tais pessoas foram denominadas com
justeza “vitimadas prévias”, que em sua mente angustiada gemem com as dores do
atropelamento antes de terem posto um pé na rua ou avistado um carro.
Pensemos em
nós. Talvez percebamos que a maior parte das dificuldades e contratempos que
sofremos não surgem – aqui está outra palavra duvidosa daquela definição
anterior –, mas somos nós que as fazemos surgir.
É óbvio que,
para o homem mole, qualquer exigência normal do dever – ter que trabalhar
submetido a prazos, ter que dedicar-se aos filhos no fim do expediente – é uma “dificuldade”.
É comum as pessoas chamarem problemas às manifestações mais comuns dos
deveres diários. Dir-se-ia que, para elas, o conceito de normalidade consiste
na lei do mínimo esforço. Caberia lembrar a essas pessoas, modificando-o um
pouco, o conhecido refrão: “Dize-me de que dificuldades te queixas, e dir-te-ei
como és”. Seria muito bom que nos déssemos conta de que, com freqüência, as
nossas queixas e reclamações são traços que desenham o auto-retrato do nosso
egoísmo.
ATITUDES PERANTE A VIDA
Com isto,
passamos a uma idéia que apontávamos no início destas páginas, quando dizíamos
que o valor e o sentido das dificuldades dependem da atitude que tomemos
diante delas. Agora podemos perceber que a própria existência de
dificuldades depende da atitude que adotemos diante da vida. Vale a pena que,
para início de reflexão, façamos a nós mesmos uma pergunta bem direta: que é
que eu procuro na vida?
A resposta da
maioria de nós será, provavelmente, que na vida procuramos muitas coisas. Mas,
de fato, há algumas delas que são como que a meta, o cerne, o centro último das
aspirações, desejos e sonhos. Assim como uns têm como meta primordial passar os
seus dias no maior conforto possível, sem complicações nem desgostos, ou têm a
ambição de ser alguém ou de amealhar uma fortuna, há outros que têm o ideal de
amar e serem úteis – esses são “cristãos” –, ao qual tudo subordinam e
sacrificam com alegria. Pois bem, dependendo da nossa meta, assim serão
as nossas dificuldades. E é evidente que cada meta, cada ambição egoísta, será
uma usina geradora de específicas dificuldades do egoísta.
Para
esclarecer melhor este ponto, será útil que meditemos sobre duas maneiras,
muito reais, de gerar dificuldades subjetivas: ter uma meta errada e ter
uma meta baixa. Se tivermos a infelicidade de seguir qualquer desses dois
caminhos, não duvidemos de que aparecerão muitas dificuldades “inúteis”.
AS METAS ERRADAS
Já dizia
Santo Agostinho que, na vida, se pode “correr bem”, mas “fora do caminho”. Bene
curris, sed extra viam. É o que acontece com muitos que lutam e se
esforçam, correndo atrás de ideais em que não encontrarão nunca a verdadeira
realização. Poderão ter “sucesso”, mas será aparente. Não demorará muito a
chegar a frustração.
Porém, o
ângulo que agora nos importa não é o da frustração, mas o das dificuldades.
Para aqueles que correm “fora do caminho” – fora do verdadeiro sentido da vida,
que aponta para o bem e para Deus –, serão dificuldades (já o víamos antes)
quaisquer oposições que encontrem para alcançar os objetivos do seu egoísmo.
Até ousaríamos dizer que, na vida de quem optou por ideais materialistas e
hedonistas, as maiores dificuldades são aquelas circunstâncias que se opõem aos
seus vícios.
É preciso
esclarecer que aqui empregamos a palavra “vício”, não conforme o uso vulgar,
mas no sentido clássico cristão. É provável que nos lembremos da enumeração que
faz o catecismo dos vícios capitais: soberba, avareza, luxúria, ira,
gula, inveja e preguiça.
Se nos
deixarmos dominar por qualquer deles, serão muitas as dificuldades que irão
enxamear. Assim, por exemplo, para o sensual dominado pela luxúria, a maior
dificuldade será ter de enfrentar a proposta de um amor fiel e sacrificado,
feito de generosa doação... Justamente aquilo que é o ideal amável para um
coração puro e reto. O casamento, para o primeiro, não deixará de ser uma fonte
de problemas e restrições, que chegará a julgar insuportáveis. É isso o que
produz a falsificação do amor; é o resultado de uma falsa meta na vida.
Pensemos no
preguiçoso. De que dificuldades se queixa? Para começar, e de modo global,
queixa-se de que as coisas custam: custa pensar, custa trabalhar, custa
cumprir o dever. Atrás de cada um dos “custa” do preguiçoso, poderíamos colocar
o nome de alguma virtude, que o cristão aprende a amar: diligência, ordem,
responsabilidade, abnegação... Todas elas são metas boas para quem está
dentro do verdadeiro caminho da vida. Para o preguiçoso, são aborrecimentos e
incômodos, porque se desviou para uma meta falsa: o bem-estar comodista.
Em todos
estes casos de corações voltados para metas erradas, as dificuldades
subjetivas, que eles mesmos criam, são reveladoras: indicam pequenez moral,
carência espiritual. Para dizê-lo de maneira mais clara, indicam uma mentira
existencial, porque o ser humano não tem como fim e razão da vida essas
metas do egoísmo, mas as da grandeza moral. Só elas o realizam.
Com efeito,
se os valores da existência se invertem, toda a vida fica falseada. É penoso
pensar que tal falsificação possa chegar a impor-se socialmente e ser servida
como critério de conduta. Talvez seja isto o que torna enfermiça a sociedade
hedonista de consumo. Os valores morais, neste ambiente, desaparecem do
horizonte, passam a tornar-se “incômodos” e, por isso mesmo, a ser contestados
ou rejeitados. A sociedade atual mostra-nos isso a cada passo. O ambiente
consumista pode ensinar-nos muito sobre as “falsas dificuldades”.
AS METAS BAIXAS
Se é perigoso
andar atrás de metas erradas na vida, não menos perigoso é conformar-se com metas
baixas.
Dirijamos
agora o foco para os que, possuindo um reto sentido da existência, adotam como
ideal de vida os valores cristãos. Muitos aceitam-nos de fato, mas não os assumem.
Na prática, conformam-se voluntariamente com uma interpretação aguada do
Evangelho, introduzindo um elemento redutor no ideal que, teoricamente,
aceitaram: viverem as virtudes cristãs, seguindo os passos de Cristo.
Poderíamos
dizer que, sem nos apercebermos disso, todos tendemos a colocar nesse ideal de
vida uma barreira, um limiar de generosidade, que não nos decidimos a
ultrapassar. Na prática da virtude, estamos dispostos a chegar “até um certo
ponto”, mas não além. Alguma coisa por dentro nos sussurra que é melhor não
exagerar, mas ser “prudente” e “comedido”, e acabamos por manter uma vela acesa
a Deus e outra ao diabo, conformando-nos com “fazer média”.
É assim que
muitos têm, na vida prática, um limiar de sacrifício – só “até aí” –, um limiar
de paciência e compreensão – ir além seria “demais” –, um limiar de
laboriosidade, de entrega às coisas de Deus ou de dedicação ao serviço do
próximo. É como se se encerrassem dentro de umas fronteiras bem guardadas, que
cuidam de não atravessar. E então qualquer exigência de virtude que for além
dessa fronteira será uma dificuldade.
Quais são os
nossos limiares? No mundo atual, tem-se a impressão de que muitos
cristãos tendem a colocá-los em um nível cada vez mais baixo. Influenciados
pelas pressões de uma sociedade de “bem-estar a todo o custo”, sem ideais e sem
fé, encolhem-se, abaixam a mira e refugiam-se num tipo de vivência moral
acomodada, que evita qualquer estridência. O absurdo do caso é que passam a ser
consideradas “estridentes” as manifestações sadias das virtudes cristãs e passa
a julgar-se “exagero” aquilo que é normal.
Pensemos, por
exemplo, que é normal uma família cristã amar os filhos e, por isso,
tê-los. Não só “o casalzinho e basta”, mas os filhos que, com visão e coração
generosos, compreendam que Deus lhes quer confiar. Quando o limiar do amor e da
generosidade é alto, os filhos costumam ser numerosos..., e as dificuldades são
infinitamente menores que as que enfrenta um casal de limiar baixo, que já se
considerou “heróico” – “nos dias que correm!”, dizem – pondo no mundo o famoso “casalzinho”
e parando depois.
Quem escreve
estas linhas pode atestar – e sabe que o seu testemunho é corroborado pelo de
muitos outros – que nunca viu lares tão felizes e tão “fáceis” de serem conduzidos
– com bom humor, suavidade e alegria – como os lares das famílias numerosas. E
pode atestar também que, pelo contrário, sempre viu eriçados de angústias e
crivados de medos e apreensões os lares dos que, fazendo pouquíssimo – tendo,
no máximo, dois filhos – achavam que faziam demais. O teto alto, o limiar alto,
evita dificuldades: tudo se torna normal, porque o coração é grande e tudo
aceita como um sacrifício e doação que considera lógicos e para os quais está
preparado.
Seria muito
bom que meditassem nisto muitos casais que se sentem aflitos e sobrecarregados.
Gemem, choram sob o peso dos seus “problemas”. Penso que, se um pai ou uma mãe
que estivessem nestas circunstâncias se dirigissem a Deus pedindo-lhe consolo,
talvez Ele lhes dissesse: “Não se queixe, depende de você. Todas essas
dificuldades que o oprimem, é você que as está criando. Não são dificuldades,
mas insuficiências do seu amor. A sua alma foi feita para vôos mais altos, a
sua vocação cristã chama-o para metas mais elevadas. Daí o inevitável conflito
que se trava no seu interior. Só sairá dele quando se resolver de uma vez por
todas a quebrar o seu “teto baixo” e a escancarar as portas da generosidade do
seu coração. Então, quase todas as dificuldades que o atormentam
desvanecer-se-ão como uma leve fumaça”.
A DIFÍCIL MEDIOCRIDADE
Essas “dificuldades
da mediocridade”, todos nós as temos. Cada um de nós poderia abrir um
livro-registro e cadastrá-las. Para tanto, bastaria identificar tudo aquilo que
achamos “demais” e que nos move ao protesto..., e reconhecer, com justa
vergonha, que o problema não é que seja de mais, mas que a nossa alma é de
menos.
É demais
assumir compromissos espirituais (Missa dominical custe o que custar, oração e
leitura diárias do Evangelho, etc.) para quem é incapaz de prescindir dos “compromissos”
assumidos com a preguiça, ou com o aperitivo diário (esse, sim, compromisso
fiel e perseverante), ou com a horinha intocável de exercício físico para se
manter em forma.
É demais
dedicar um tempo – renunciando a empregá-lo em gostos pessoais – a um amigo que
esteja precisando de ajuda, a um doente ou até mesmo a um filho que exija uma
atenção mais abnegada... É demais para aqueles que, pensando bem, não é que
façam “de menos” pelo seu próximo, é que simplesmente não fazem nada...
É demais ter
um terceiro filho (ou um primeiro!, ou um quarto). É uma hipótese que chega a
ser encarada como uma espécie de catástrofe... Depois, vai-se ver o caso mais
de perto, e não há modo de encontrar justificativa para essa restrição, nem nos
problemas financeiros, nem nos de moradia, nem nos de saúde...
É demais ter
de suportar os defeitos e indelicadezas dos que conosco convivem; é tão “demais”,
que muitos podem lembrar-se de autênticas “tragédias” provocadas por
insignificâncias: uma resposta um pouco atravessada, um cumprimento frio, os
cotovelos em cima da mesa... Esquecemos que, para um cristão, os dois limiares normais
do amor ao próximo são: Amarás o próximo como a ti mesmo (Mt 22, 39) e amai-vos
uns aos outros como eu vos amei (Jo 13, 34).
Para quem há
de ser a enumeração das características da caridade cristã que faz São Paulo?
Com certeza não é para quem jamais encontrou pessoas com defeitos, com
grosserias, com esquecimentos ou com mau humor. São Paulo não escreve para
anjos, mas para homens, quando dá como limiar normal da caridade o seguinte: A
caridade é paciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é jactanciosa,
não se ensoberbece, não é descortês, não é interesseira, não se irrita, não
guarda rancor; não se alegra com a injustiça, mas compraz-se na verdade; tudo
desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre (1 Cor 13, 4-7).
A pessoa que
aceita como norma de vida este programa, dificilmente se queixará de
dificuldades na família ou no ambiente profissional. O que para outros seriam
dificuldades, para o cristão de limiar alto e sadio são ocasiões diárias de
amar e de servir.
AS FRONTEIRAS DO CORAÇÃO
Quer isto
dizer, portanto, que o problema de grande parte das nossas dificuldades se
reduz a um problema de ampliação das fronteiras do coração. É preciso que nos
decidamos a elevar o nosso nível de normalidade, sem nos deixarmos
dominar pelos níveis que o ambiente pretenda impor.
Neste ponto,
o cristão deve ser especialmente firme e coerente. Caso contrário, facilmente
se deixará arrastar pelo fluxo de um meio social onde cada vez se torna mais
comum que até mesmo aquilo que é francamente “anormal” se normalize e se
imponha como lei: “Hoje em dia, as coisas são assim, as coisas mudaram. O que
causa estranheza – não faltará quem o diga – é que um homem, decorridos dois ou
três anos, ainda esteja com a mesma mulher com quem se casou...”
O mundo
parece mergulhar aceleradamente na idolatria do agradável, do fácil e do
cômodo. Facilidades da técnica, que nasceram como meios de a pessoa se
organizar e trabalhar melhor, de aproveitar melhor o tempo, de possuir maior
informação, vão-se transformando em utensílios de amolecimento. Tende-se a amar
o fácil por ser fácil, o agradável por ser agradável, sem cuidar
de discernir se é o certo e o bom. O homem que se deixa dominar
por esses critérios fica moralmente enfraquecido e chega a não ver sentido
naquilo que dá sentido à vida, só porque o considera difícil: não
vê sentido no amor-doação, na renúncia para servir, no sacrifício para ser
fiel, em suma, nos valores morais que forjam a grandeza do homem. Daí a
necessidade, urgente necessidade, de os cristãos alargarem as fronteiras do seu
coração, para assim trazerem um sopro de vida a este mundo que parece estar
perdendo a alma.
Ora, esse
sopro renovador só será dado ao mundo pelos que estiverem dispostos a rever os
níveis dos seus ideais e a elevar o teto da sua normalidade. Isto há de chocar,
sem dúvida, no ambiente4. Mas, no fim das contas, será um choque de
revitalização, uma sacudidela capaz de despertar do letargo aqueles que ainda
podem reerguer-se e caminhar.
Esses homens
e mulheres de níveis morais sadios, acima da média doentia, talvez não sejam
compreendidos. Talvez precisem da coragem de começar a lutar sozinhos, sem
sentir apoio no ambiente, nem sequer no mais próximo. Terão de ser corajosos
para serem autênticos e não dobrarem o joelho ante o que “todo o mundo faz”...
Por isso, deverão amar muito a Verdade, e será também preciso que se decidam a
apagar do seu dicionário a palavra dificuldade ou, pelo menos, a
mudar-lhe o sentido.
No novo
dicionário dos que aceitam os limiares de Cristo, o verbete dificuldade
será, pois, explicado assim: “Dificuldade: a maior parte das vezes, é o
mal-estar gerado pelos nossos defeitos ou pela nossa mediocridade; algumas
vezes, é um obstáculo objetivo que se encontra na vida, e que – tendo sido
enviado ou permitido por Deus – tem como finalidade firmar-nos no bem,
fazer-nos crescer espiritual e humanamente, purificar-nos e elevar a nossa
alegria até uma altura até então insuspeitada”.
Metade da
exposição deste novo verbete já foi feita nas páginas que antecedem. Procuremos
agora refletir sobre a outra metade.
AS
DIFICULDADES OBJETIVAS
Nem todas as
dificuldades são subjetivas, decorrentes dos nossos defeitos pessoais. Existem
dificuldades objetivas, e não somente existem como são uma permanente presença
no caminho da nossa vida, em cada um dos seus passos. E é natural que seja
assim.
A existência
humana é dinâmica. O progresso é lei da nossa vida, porque não estamos “feitos”
de uma vez por todas, mas avançamos passo a passo, ao longo dos nossos dias,
rumo à nossa plenitude. Isto exige uma contínua superação, uma vez que avançar
não é dar voltas ao redor do mesmo ponto, mas subir, superar-se a si mesmo e
crescer. Em qualquer momento da nossa existência, sempre podemos enxergar –
tanto do ponto de vista do trabalho e da cultura, como da vida espiritual e
moral – mais um degrau a galgar, mais um patamar a alcançar. E é claro que
ninguém consegue uma ascensão sem esforço e, em conseqüência, sem ter de
enfrentar resistências e dificuldades.
Montanhas e
serras, dificuldades, têm um valor para quem caminha. Poderiam ser barreiras –
se faltasse ideal e empenho –, mas podem ser degraus. Lembrando-nos de
São Paulo, que afirma que todas as coisas concorrem para o bem dos que amam
a Deus (Rom 8, 28), procuremos ver como é que as dificuldades objetivas
contribuem para o nosso melhoramento. Neste sentido, vamos deter-nos a
considerar com um pouco de calma quatro dos principais benefícios que as
dificuldades objetivas nos podem trazer.
AS DIFICULDADES
FIRMAM-NOS NO BEM
As
dificuldades firmam-nos no bem, dão-nos têmpera moral.
Na vida do
esportista, cada dificuldade é um “desafio”. Não costuma ser assim – infelizmente
– na vida moral. Basta às vezes o aparecimento de uma dificuldade um pouco
maior para sentirmos a tentação de deter a marcha e olhar para trás; de
desistir ou, pelo menos, de recuar.
Esta tentação
nota-se especialmente quando fazemos bons propósitos de mudança. Começamos bem,
animados e esperançosos: desta vez, as coisas vão melhorar. Mas lá vem logo,
como um balde de água fria, uma dificuldade não esperada, pelo menos não
esperada... tão cedo.
Imaginemos um
pai de família que um belo dia se propõe sair do seu proverbial mutismo e
ultrapassar as habituais respostas monossilábicas e secas. Tenta, mais ou menos
desajeitadamente, dizer umas palavras especialmente amáveis à esposa e aos
filhos. Não se sabe se pelo insólito do caso, ou porque o diabo meteu o rabo, o
fato é que mulher e filhos reagem mal: “Você não se sente bem?”, “Pai, o que é
que deu no senhor?” Imediatamente, o pai-caramujo, ferido nas suas melhores
intenções, sente o irresistível impulso de se enfiar no mais profundo da sua
carapaça e dizer: nunca mais!...
É muito comum
os propósitos murcharem por tropeçarmos com dificuldades. Não nos esforçamos
por ser mais afáveis porque nem sempre somos bem compreendidos. Não
perseveramos na oração diária porque nos distraímos com facilidade e temos a
impressão de estar perdendo o tempo. Não mantemos os horários de trabalho e os
planos de aproveitamento do tempo porque desanimamos com os imprevistos que os
alteram. Não prosseguimos na luta por ser humildes porque não conseguimos
evitar que as pontadas do amor-próprio pipoquem a cada passo.
Na realidade,
cada dificuldade que surge no caminho dos nossos bons propósitos nos põe à
prova. É um teste de sinceridade. Porque a dificuldade, incitando-nos a
desistir ou a recuar, obriga-nos a tomar uma posição, a determinar se
queremos ou não. Com efeito, cada dificuldade provoca uma certa hesitação, e
por isso mesmo nos exige uma decisão. A nossa vontade deverá inclinar-se ou
pelo lado do ideal moral – dos valores e das virtudes cristãs – ou pelo lado da
facilidade.
Certamente a
dificuldade nos abala. Mas também é como se, por assim dizer, nos obrigasse a
fixar o olhar num valor moral superior: um valor difícil, mas
autêntico. Tendo-o inequivocamente diante dos olhos, não temos outro jeito
senão optar e dizer um “sim” ou um “não”, pondo assim à prova se queremos o bem
acima de tudo ou se apenas o desejamos de um modo relativo e sem compromisso.
Cada dificuldade, portanto, permite uma auto-avaliação da nossa qualidade
moral.
Se, no
exemplo do pai de família acima mencionado, o protagonista desiste dos seus
bons propósitos, estará optando pelo orgulho (não estará disposto a sofrer uma
pequena humilhação pelo bem); pelo contrário, se persevera no esforço,
optará pelos valores cristãos da humildade e do amor; e, na medida em que
prosseguir na luta por melhorar a sua caridade, por abrir um espaço novo ao
amor na rispidez do seu caráter, estará firmando em si uma nova e mais alta
qualidade moral, crescerá em estatura espiritual e se tornará, no sentido
mais profundo e verdadeiro do termo, um homem melhor.
Quando
sentimos, portanto, o desânimo que, perante uma dificuldade, nos impele a
pensar que “não dá”, devemos convencer-nos de que a verdade se encontra na
posição contrária: somente assim é que dá. Isto é, somente enfrentando e
superando uma dificuldade colocada no caminho da virtude é que a mesma virtude
se consolida e se torna forte.
As tentações nos
experimentam
Este é também
o sentido das tentações que nos assaltam. Pelo menos, é um dos seus principais
significados positivos, dentro dos planos de Deus.
Entendemos
por tentação tudo aquilo que, vindo de dentro ou de fora de nós, nos incita à
prática – por pensamentos, palavras, ações ou omissões – de um mal moral, de um
pecado.
Mas a
circunstância de a tentação nos inclinar para o mal não significa que ela –
quer proceda dos nossos desejos desordenados, quer dos outros, quer do tentador
– seja algo negativo aos olhos de Deus. Se prestarmos atenção ao texto do Pai
Nosso, perceberemos que, nesta oração, Cristo nos ensina a pedir de modo
absoluto: “livrai-nos do mal”. Mas não ensina o mesmo em relação às tentações.
Não nos faz pedir a Deus Pai que as elimine da nossa vida, mas que não nos “deixe
cair” nelas. Parte da base de que as tentações hão de existir, e de que o que
importa é que Deus nos ajude a vencê-las. Isto porque a tentação, que é uma
dificuldade na prática da virtude, pode ser-nos muito útil – como acontece com
as outras dificuldades – para firmar-nos no bem. É um “benefício” que a própria
palavra tentação sugere, pois a sua tradução mais exata seria “prova”: uma
prova, um teste da virtude. É neste sentido que São Tiago diz, cheio de
otimismo: Feliz o homem que suporta a tentação. Porque depois que tiver sido
provado, receberá a coroa da vida, que Deus promete aos que o amam (Tg 1,
12).
A tentação
prova-nos como o fogo prova o ouro, escreve São Pedro (1 Pe 1, 7). É a mesma
idéia que se encontra no Livro da Sabedoria: falando dos justos que tiveram de
enfrentar sofrimentos e provações, afirma que Deus os provou e os achou
dignos de Si. Ele os provou como ouro na fornalha, e os acolheu como holocausto
(Sab 3, 5-6).
As nossas
virtudes estão sendo testadas constantemente. Todos os dias encontramos
incentivos para agir mal: para perder a paciência, para abandonar um dever, para
nos ferirmos uns aos outros com palavras ou atitudes, para nos deixarmos
arrastar pela sensualidade e pelas desordens do coração...
Aqueles que
se esforçam por viver uma vida cristã digna, lamentam-se com freqüência desta
presença constante das tentações, que parecem desbaratar os melhores
propósitos. Pensam: “Estas tentações só me atrapalham e me perturbam”. Deus,
com certeza, pensa de outra forma. Bem sabe Ele a finalidade por que permite as
tentações: não para que nos impeçam a prática do bem, mas para que,
testando-nos, nos incentivem a praticá-lo com mais força e com maior
autenticidade, nos movam a tornar mais puro – mais decidido e consciente – o
ouro das virtudes.
Se na vida
tudo discorresse suavemente, sem que nada nos incentivasse a praticar o mal,
seria muito fácil acomodarmo-nos numa bondade inercial, e imaginar que
estávamos caminhando bem, quando na realidade talvez nos estivéssemos afogando
insensivelmente na rotina. Não fosse a tentação – a prova – que vem
despertar-nos do sono, seria fácil entregarmo-nos à sonolência e até mesmo à
morte espiritual, da mesma maneira que se entrega à morte física, sem o
perceber, aquele que à noite aspira dormindo as emanações de um escapamento de
gás. A tentação sacode, desperta, obriga-nos a lutar e, com a graça de Deus, a
vencer.
Virtudes e sentimentos
Uma das
grandes vantagens das provas por que passamos é o fato de que elas nos libertam
dos enganos da bondade sentimental. As virtudes não consistem em
sentimentos, e menos ainda em sentimentalismos, mas em bons hábitos práticos,
que devem ser vividos em todas as circunstâncias, favoráveis ou adversas. “Sentir-se
bom”, experimentar o gosto pelos bons sentimentos de amor e de bondade, não
quer dizer “ser bom”. A bondade mede-se, não o esqueçamos, pela prática de atos
de virtude, especialmente dos atos de virtude difíceis.
Não pode ser
considerada paciente uma mulher que sente os seus nervos calmos e inalterados
durante umas semanas em que, por qualquer motivo, ninguém a perturba. Será
paciente se souber manter-se serena e equilibrada no meio de uma chuva de
contrariedades: falta de dinheiro, os filhos que se tornaram impossíveis, o
marido que acaba de perder o emprego e, coincidentemente, o preço da cesta
básica que subiu... “Existem alguns – dizia São Gregório Magno, já no século
VII – que querem ser humildes, mas sem serem desprezados; querem contentar-se
com o que têm, mas sem padecer necessidade; ser castos, porém sem mortificar o
corpo; ser pacientes, mas sem que ninguém os injurie. Quando querem adquirir as
virtudes, fugindo ao esforço que as virtudes trazem consigo, é como se,
ignorando e nada querendo saber dos combates no campo de batalha, quisessem
ganhar a guerra vivendo comodamente na cidade”5.
Um sentimento
não provado pode ser falso; e tem o perigo de induzir-nos à vaidosa
auto-complacência de quem pensa: “Como sou bom!”, e se deixa invadir pelas
emanações do orgulho, como um perfume enganoso destampado no coração.
A tentação,
portanto, é boa. Em certo sentido, é até necessária. Santo Agostinho chega a
dizer que “nesta peregrinação em que consiste agora a nossa vida, não pode
deixar de haver tentações, porque o nosso melhoramento realiza-se através da
tentação. Ninguém se conhece a si mesmo se não for tentado; ninguém pode ser
coroado se não tiver vencido; não pode vencer se não tiver lutado; e não pode
lutar a não ser tendo tido tentações e inimigo”6.
Conhecimento próprio
O teste das
provações é ainda importante para o conhecimento próprio. Santo Agostinho, que
possuía uma vasta experiência pessoal nesta matéria, tem toda a razão ao dizer
que “ninguém se conhece a si mesmo se não for tentado”.
Aí temos, por
exemplo, o caso de uma professora que sempre se julgou aberta e compreensiva,
inclinada a relevar as faltas de alunos e colegas. Costumava dizer: “Todos
somos humanos, todos temos defeitos, é preciso saber desculpar a todos”. E de
fato, tinha uma afabilidade proverbial. Até que um belo dia começou a perceber
alguma coisa estranha na escola: não mais a convocavam para reuniões de estudo
e planejamento; alegando desculpas, tiraram-lhe uma das classes; percebia
cochichos na sala de professores, que se calavam mal ela aparecia no local...
Pouco demorou a perceber a manobra. Estavam armando uma intriga para “encostá-la”
e colocar outra em seu lugar. A “panelinha dominante” tirava-lhe o tapete de
sob os pés.
Começou a
sentir que lhe faltava o ar. Uma onda quente subia-lhe à cabeça e se
transformava num redemoínho, em que giravam vertiginosamente sentimentos de
ódio, de vingança, de amargo ressentimento. Surpreendia-se maquinando revides.
Deixou passar alguns dias, tentou acalmar-se, rezou. E então percebeu que, no
momento da prova, a sua compreensão se lhe revelava mais fraca do que
imaginara: sentia-se como que incapaz de viver, na hora da verdade, o que
sempre apregoara. E assim, a tentação do ódio e do rancor fê-la cair em si.
Teve que enfrentá-la. Restava-lhe um caminho muito difícil. Sem dúvida, teria
que defender a sua causa, que era justa, com os meios lícitos ao seu alcance,
mas sem admitir que o ódio, a inimizade ou o espírito de vingança se apossassem
do seu coração.
Se, no caso
hipotético da professora, esta – com a ajuda de Deus – vencesse, ter-se-ia
transformado finalmente, graças a essa prova, que lhe abriu os olhos para
conhecer-se, numa mulher realmente boa e compreensiva, alguém que, sem abdicar
da justiça, seria capaz de perdoar.
Nas palavras
acima citadas, Santo Agostinho agradece ainda ao “inimigo” o favor que nos
presta permitindo-nos a vitória. É um pensamento que faz lembrar o que escreve
Saint-Exupéry, em Cidadela: “Só existimos na medida em que temos um
inimigo”7. Em certo sentido, estas palavras encerram uma grande
verdade. Moralmente falando, só “existimos” na medida em que lutamos contra os
fortes “puxões” do inimigo da virtude. E é esta, a virtude, que, fazendo força
em sentido contrário a esses puxões – quer sejam os da inveja, os do
amor-próprio ferido, os do comodismo, os da sensualidade... –, se robustece e
se afirma.
Em suma,
podemos afirmar que um dos benefícios das provas é revelar-nos a fraqueza das
nossas virtudes. Com isto, as provas ajudam-nos a fazer uma coisa que nos é
muito necessária: colocar a luta pelo aprimoramento moral lá onde é realmente
necessária.
“Encontramos
às vezes – diz von Hildebrand – certos homens animados de grandes desejos de se
aperfeiçoarem, mas que fazem incidir a sua atenção sobre faltas puramente
imaginárias, deixando subsistir descuidadamente os seus verdadeiros defeitos
(...). Quanta boa vontade malbaratada, quantas energias perdidas, quanto tempo
desperdiçado, se nos entretivermos a lutar contra moínhos de vento, procurando
as nossas faltas onde elas não estão! Muitos julgam descobrir os principais
perigos onde nada os ameaça, e passam por alto os verdadeiros riscos. Devemos
pedir e agradecer a Deus a graça de nos abrir os olhos para os perigos
verdadeiros, indicando-nos onde devemos enrijecer a luta”8.
A tentação e
a prova são umas excelentes “abridoras de olhos”.
AS
DIFICULDADES FAZEM-NOS CRESCER
Estas
reflexões levam-nos, quase que espontaneamente, a um segundo benefício das
dificuldades objetivas: elas nos fazem crescer. Pelo que foi dito antes,
esta conclusão quase que se impõe por si, mas não é supérfluo analisá-la um
pouco mais de perto.
É um fato
evidente que não cresce aquele que fica detido num ritmo espiritual de simples manutenção
das suas virtudes e qualidades. Não são poucos os homens parados que – como o
equilibrista – se mantêm na corda bamba de uma “certa bondade”, mas não avançam
um só passo. Os anos vão passando, eles continuam a ser bons, mas estão sempre
na mesma. Na mesma aparentemente, porque a alma nunca pode “ficar na mesma”. Há
um velho adágio cristão, cheio de sabedoria e experiência, que afirma que, na
vida espiritual, “não avançar é retroceder”.
Todos
conhecemos casos surpreendentes de retrocessos. Trata-se de pessoas que, tendo
oferecido durante longo tempo uma imagem de honestidade e bondade, de repente
nos chocam com uma virada completamente inesperada. Um pai que, sem motivo
aparente, larga a família; um profissional íntegro que um dia amanhece
incrivelmente envolvido num desfalque; uma pessoa religiosa, católica
praticante e atuante, que subitamente mergulha numa crise e abandona a fé...
Nestes casos,
tudo parece indicar que houve um afundamento repentino e inexplicável. Mas a
experiência da vida nos diz que, na maior parte das vezes, não foi assim. O que
aconteceu foi que essas pessoas se conformaram com um espírito de “simples
manutenção”, com ir levando as coisas sem um impulso de crescimento. Já fazia
anos, talvez, que se arrastavam numa rotina sem vida, e essa rotina – como água
fina que penetra pelas rachaduras de uma casa – foi desgastando a bondade e
esvaziando as virtudes. Tal como na vida do corpo, a falta de renovação trouxe
a necrose.
Este processo
de deterioração provocado pela rotina observa-se, com muita freqüência, na
gênese de boa parte dos problemas familiares. Podemos pensar numa família
estável, bem constituída, em que pais e filhos se mantêm unidos pelos laços do
carinho. É claro que, por melhor que seja o ambiente familiar, não faltam as
dificuldades. Talvez sejam apenas as corriqueiras, mas, por serem muitas vezes
repetidas, podem ir empanando insensivelmente o afeto, recobrindo de ferrugem
invisível as boas vontades e as boas disposições. Então, à medida que o tempo
passa, os atritos podem tornar-se mais freqüentes, a impaciência – provocada
por minúcias insignificantes – mais áspera e repetida, e o mau humor ir
ganhando terreno no relacionamento familiar. Certamente, não deixará de haver
momentos em que os defeitos de um ou de outro se acentuem, e então a irritação
poderá tornar-se explosiva. Bem sabemos como uma reação brusca – um comentário
ríspido, um surto de ira, uma crítica ferina – costuma provocar outra reação
mais brusca ainda, e assim acaba-se dando origem a uma reação em cadeia de
mágoas, acusações, decepções e desentendimentos capaz de desandar para um
desfecho catastrófico.
A recusa de crescer
Caso nos
perguntemos o que houve num processo deste tipo, possivelmente a primeira resposta
que nos venha ao pensamento seja: houve dificuldades, uma chuva de pequenas
dificuldades, uma poeira desgastante e insuportável de dificuldades.
No entanto, a
resposta verdadeira é outra. O que houve foi uma recusa do dever moral de
crescer. Na realidade, cada pequena dificuldade estava pedindo um pouco mais:
um pouco mais de paciência, um pouco mais de generosidade, um pouco mais de
abnegação e esquecimento próprio, um pouco mais de humildade... Cada
dificuldade era um apelo para se crescer em algum aspecto de uma virtude, mas o
coração estava acomodado e não foi capaz de dar esse algo mais.
Cada
dificuldade, grande ou pequena, indica, por assim dizer, o tipo de crescimento
espiritual que Deus espera de nós. Quando lutamos por superá-la, isto é, por estar
à altura daquilo que a dificuldade nos exige – esse “pouco mais” de que falamos
–, estamos dando um passo à frente e subimos até um nível de maturidade
adequado que nos deixa em condições não só de evitar o desgaste, mas de nos
tornarmos melhores.
Cristão
normal – aquele que tem energias para viver moralmente bem – é aquele que
consegue dar, ajudado por Deus, a resposta certa, com um novo ato de virtude, a
cada nova situação que aparece: resposta de fé, ou de amor, ou de fortaleza, ou
de sacrifício.
Se, em vez
disso, permanece na manutenção rotineira dos seus hábitos, recusando-se a dar
mais de si quando as circunstâncias lhe pedem maior virtude, ficará como que
achatado e sem forças. Irá ficando “por baixo” dessas circunstâncias,
moralmente defasado e, por isso mesmo, incapaz de dar uma resposta à altura do
que é preciso. É natural que acabe sucumbindo. Aqui se encontra, em resumo, a
explicação de muitos inexplicáveis.
Duas fraquezas
É importante
que nos apercebamos de que existem no homem duas espécies de fraqueza, muito
diferentes entre si: uma é a fraqueza natural – que poderíamos chamar sadia –,
e que é própria das limitações de todo o ser humano (a fraqueza que também os
santos experimentam); e outra é a fraqueza doentia, que resulta da apatia moral,
da falta de ideais ou de luta por alcançá-los. Esta fraqueza doentia é a que
deixa o homem desarmado perante os valores morais. As mesmas dificuldades que
para o homem moralmente sadio são corriqueiras, que não passam de pequenas
lutas diárias que se aceitam com naturalidade, para o doentio são intoleráveis,
da mesma forma que o alimento são é insuportável para o estômago enfermo.
Estamos
repetindo, ao longo destas páginas, que o valor das dificuldades depende da
atitude que adotemos diante delas. A atitude certa, no caso, é a de aceitá-las
sem protesto nem surpresa, como um incentivo e um belo desafio. “Cresce perante
os obstáculos”, diz Caminho9. Esta pequena frase resume tudo
o que agora procuramos comentar. É preciso não só contar com as dificuldades,
mas aceitá-las de bom grado e até amá-las, uma vez que elas nos ajudam a
construir, degrau a degrau, a escada que nos eleva até à maturidade moral.
Esta é a
atitude do esportista, do pesquisador, do homem que se lança a uma nova
iniciativa profissional. Ao começar a sua tarefa, está num ponto de partida e
sabe que tem diante de si, a aguardá-lo, inúmeras dificuldades. Desde o início,
tem consciência de que não se está propondo coisas fáceis e sem valor. Não está
a fazer exercícios de repouso na rede. Está começando a lutar, tem um objetivo
grande e empolgante – vencer um torneio, fazer uma descoberta científica,
arrancar do nada um empreendimento –, e com gosto arregaça as mangas. Se há
dificuldades, e necessariamente tem que havê-las, elas serão um estímulo
diário, um motivo de criatividade e de melhor desempenho. Tudo isto, que é tão
evidente nos ideais puramente humanos, às vezes parece obscurecer-se quando se
trata do maior ideal, da maior grandeza do homem: a sua autêntica realização
que – como víamos – é a realização espiritual e moral, a perfeição do homem
enquanto homem e filho de Deus.
Quem tem
grandeza moral nem sequer espera pelas dificuldades. Adianta-se e vai ao
encontro delas. É a grandeza moral que o faz propor-se metas espiritualmente
altas e árduas, recusando como verdadeira morte a instalação medíocre numa
bondade morna.
Deste modo, o
homem que se propôs a meta alta de viver o amor a sério, vai alentando no seu
íntimo o desejo eficaz de se entregar cada dia mais a Deus e aos homens. Tudo o
que faz lhe parece pouco. No fundo da alma, ecoa-lhe como uma música empolgante
a palavra “mais”. Movido por esse afã, procura motivos e ocasiões de
sacrificar-se, de renunciar a pequenos egoísmos, de servir e alegrar a vida dos
outros. E então, quando se lhe apresentam as dificuldades, elas o encontram já
a caminho da doação: são como o bastão que o atleta apanha com força, já em
tensão de velocidade, na corrida de revezamento. O homem generoso não é
surpreendido pelos obstáculos, pois não estaciona na bondade fácil, mas está em
carreira acelerada para a bondade difícil.
A bondade difícil
Seria muito
interessante que cada um de nós se perguntasse qual é a sua bondade difícil.
Com um pouco de sinceridade, não demoraríamos a descobri-la. Para uns, é a
abnegação, para outros a compreensão, para outros a intensidade e perfeição no
trabalho, para outros a serena paciência... Para cada um, aquelas virtudes que,
nos maus momentos, nos sentimos inclinados a julgar como impossíveis: “Eu não
fui feito para isto, isto comigo não dá, nunca vou conseguir”.
Pois bem,
essas bondades difíceis devem ser exatamente as nossas metas,
voluntariamente abraçadas, no esforço de aperfeiçoamento moral. É nesses “obstáculos”
que devemos “crescer”.
Triste coisa
seria que nos contentássemos com as virtudes que brotam espontaneamente do
nosso temperamento e dos nossos hábitos. Ficaríamos fadados ao raquitismo
espiritual e nos fecharíamos numa mediocridade cristalizada e sem remédio. O “homem
de manutenção”, de que falávamos, não tem propriamente virtudes firmes, tem
antes o que poderíamos chamar “os defeitos das virtudes”, isto é, as
manifestações desfibradas de algumas qualidades excessivamente atreladas ao seu
modo de ser – tranqüilo, bonachão, ordeiro –, ou às suas manias – “gosto” de fazer
isto ou aquilo –, ou aos seus hábitos inerciais. As virtudes boas são mesmo as
difíceis. A estas é que o homem digno deste nome deve aspirar.
Depois de se
propor essa meta, virá uma segunda parte. Como atingi-la? O que equivale a
perguntar-se como enfrentar o lado difícil da bondade e crescer nele. Quando se
“quer”, sempre existe um “como”. Os que nunca concretizam os modos práticos de
melhorar são os que aspiram aos seus ideais sem sinceridade. Por serem
incapazes de dizer “quero”, dizem apenas “quereria”, mas nem eles nem ninguém
sabe como é que vão querer.
Sempre há
algum modo de fincar o dente numa aspiração difícil. Sempre há pelo menos um
modo de começar. “Concretiza – lê-se em Caminho –. Que os teus
propósitos não sejam fogos de artifício, que brilham um instante para deixar,
como realidade amarga, uma vareta de foguete, negra e inútil, que se joga fora
com desprezo”10.
É claro que,
para isto, é preciso saber dar o primeiro passo rumo à meta que nos propomos, e
não arredar pé depois, mesmo que custe e custe muito. Com espírito esportivo,
devemos tentar uma vez e outra, tendo a coragem e a humildade de “começar e
recomeçar”11, e tendo ao mesmo tempo a fortaleza de ser pacientes
conosco próprios, porque a ascensão da montanha da grandeza moral é sempre
lenta. Como numa construção, “para edificar é preciso sofrer (...). As mãos dos
pedreiros ferem-se na aspereza da argamassa e, por muito manejarem a colher,
tornam-se calosas e as suas unhas descuidadas. A pedra é resistente e pesada.
Só obedece à força de marteladas. É teimosa e cheia de arestas pontiagudas e
cortantes... Não seria possível construir sem martelo e sem ruído, sem
violência nem golpes, por meio de um simples desejo? Todos os que têm medo da
realidade esbanjaram assim o seu tempo em fantasias. Meu Deus, fazei-me amar o
trabalho rude”12.
AS DIFICULDADES
PURIFICAM-NOS
Eis o
terceiro benefício que as dificuldades nos proporcionam, quando sabemos
enfrentá-las com grandeza de espírito.
Não creio que
nenhum de nós tenha a pretensão de ser “puro”. Por pouco que nos conheçamos,
temos a consciência de que mesmo as nossas melhores qualidades andam misturadas
com “impurezas”, isto é, com deficiências, imperfeições e defeitos. Dentro dos
nossos ideais mais elevados, não raro se encontram laivos de vaidade ou
ambição. O próprio afeto que dedicamos aos outros apresenta ainda “rebarbas” de
egoísmo. E até a nossa vida religiosa não deixa de estar sombreada por
interesses menos puros: desejamos amar a Deus, mas ainda o procuramos demais
como “instrumento” do nosso bem-estar interior; não o amamos por Ele, com puro
amor.
A luta que purifica
É claro, por
isso, que as nossas “melhores qualidades”, quando nos esforçamos por
exercitá-las, deparam com dificuldades. Neste caso, as dificuldades podem ter o
efeito benéfico de um choque que, ao fazer saltar a faísca, ilumina um ponto de
escória que se achava escondido no meio do ouro: evidenciam uma impureza de que
não tínhamos consciência, e com isso nos abrem o caminho para começar a
eliminá-la da nossa vida.
Lembro-me de
certa pessoa que, à semelhança de um dos casos anteriormente citados, desejava
ardentemente espalhar à sua volta, entre os que com ela conviviam, uma maior
bondade e alegria. Para tanto, começou por fazer o propósito de dar a todas as
suas palavras e conversas um tom positivo: não criticar, não contradizer
futilmente o que os outros dissessem, não externar opiniões pessimistas. Pôs
mãos à obra com a maior boa vontade... e comprovou, com certo desapontamento,
que tudo continuava praticamente na mesma. Seu desejo de fazer o bem chocava-se
com a dificuldade da incompreensão, da falta de receptividade por parte dos
outros. Pôs-se a refletir sobre o aparente enigma desse fracasso. Deu-se a
faísca e a luz: pela primeira vez na vida, percebeu que – com a melhor das
intenções – falava demais. Tentava eliminar comentários negativos, mas não
tinha atinado com a necessidade de limpar a sua tendência pouco pura de inundar
os outros com uma torrente de palavras e de falar demais de si mesma. O “choque”
levou-a à atitude humilde de escutar mais e falar menos, de não pensar tanto em
amar os outros “à moda dela”, mas em amá-los “à moda deles”, quer dizer, tendo
muito mais presente o que cada um deles precisava. A dificuldade trouxe-lhe uma
maior pureza, e o seu desejo de espalhar alegria tornou-se mais eficaz.
Mencionávamos
acima que até a vida religiosa – a nossa relação com Deus – pode estar tingida
de interesse. É uma “impureza” que dificilmente perceberá quem não leve as
coisas de Deus a sério. Basta, porém, que nos empenhemos em melhorar o nosso
trato com Deus para que comecemos a tropeçar com dificuldades até então não
experimentadas. Por exemplo, a aridez ou a facilidade com que nos distraímos
nas orações, que agora desejaríamos tornar mais intensas e constantes. Essas “novas”
dificuldades poderão ser-nos de uma grande utilidade. Inicialmente, talvez nos
desanimem. Se persistirmos em nossos bons desejos, virá a faísca e se fará a
luz: perceberemos que procurávamos a Deus “para nós”, amávamos a oração porque
nos envolvia em paz e tranquilidade, e a prática religiosa porque nos cumulava
de gosto. A dificuldade da aridez poderá abrir-nos os olhos e levar-nos a
compreender que nada há de mais belo do que manter-se fiel às práticas
religiosas – com gosto ou sem gosto – para “agradar a Deus”. E assim poderemos
limpar a nossa vida religiosa da “impureza” do egoísmo espiritual.
Deus intervém
Há, porém, um
outro caminho – melhor que o que acabamos de mencionar – para conseguirmos a
purificação progressiva daquelas virtudes que em nossa vida já são “boas”: as
contrariedades que fazem sofrer.
Não é nossa
intenção, nestas páginas, abordar o tema do sentido cristão do sofrimento. Por
isso, limitamo-nos aqui a focalizar as contrariedades cotidianas, entendendo
por “contrariedade” o pequeno acontecimento desagradável que sobrevém sem que
nós tenhamos responsabilidade ou influência sobre ele: desde o osso do pé
trincado ao escorregarmos na escada até uma chuva torrencial que intercepta o
trânsito ou a desagradável descoberta de que nos foi furtada, no ônibus, a
carteira com todos os documentos.
Em si,
acontecimentos deste tipo parecem sem sentido nenhum. Quando muito,
atrapalhações um tanto absurdas, que devemos aceitar – que remédio! – sem
deixar que os nossos nervos fiquem excessivamente abalados. Podemos reagir
dizendo: “Paciência, são contrariedades inevitáveis, temos que aprender a
conviver com elas”.
Se realmente
tivéssemos fé, iríamos além. Não vamos dizer que essas contrariedades tenham
sido sempre “enviadas” diretamente por Deus. Mas devemos pensar que nelas está,
sim, a mão de Deus. Se Deus não as enviou – e certamente Ele não queria um
pecado, como o furto no ônibus –, Ele as “permitiu”. Não teria deixado que
acontecessem se, na sua sabedoria infinita, não visse que nos podiam trazer um
bem.
Mais de uma
doença grave foi o começo de uma conversão. Em ponto pequeno, cada
contrariedade pode ser ocasião de uma pequena conversão. Acabar sorrindo
após um furto, ao pensar nos cruzados perdidos e na burocracia que nos espera
para reaver os documentos, é um ato de liberdade e desprendimento que
engrandece a alma. Encarar com bom humor o gesso no pé, com a perspectiva de
ficar quarenta dias sem poder jogar futebol nos fins de semana, é algo que
também nos pode purificar, ajudando-nos a abraçar com paz este pequeno
sacrifício e a entender que há na vida coisas boas – por exemplo, o futebol –
que não são realmente “essenciais” e das quais não depende a nossa autêntica
felicidade. Um repouso de gesso e muleta pode contribuir para que agradeçamos
melhor a Deus os verdadeiros bens – os espirituais –, que nenhuma escorregadela
na escada nos pode arrebatar. É mais puro quem compreende isso e se volta com
mais interesse para esses bens que a traça não consome nem o ladrão
desenterra e rouba (cfr. Mt 6, 20).
É claro que
Deus, na sua sabedoria e no seu amor, pode ir mais longe, permitindo
contrariedades de maior vulto. Seja como for, não esqueçamos que todas elas têm
– nos planos dEle – uma finalidade positiva. Podemos não entendê-las, mas devemos
estar certos de que “nos convêm”. “Não te queixes, se sofres – lemos em Sulco
–. Lapida-se a pedra que se estima, que tem valor. – Dói-te? – Deixa-te
lapidar, com agradecimento, porque Deus te tomou nas suas mãos como um
diamante... Não se trabalha assim um pedregulho vulgar”13.
Quando se
entende isto, a alma enche-se de confiança. Cada contrariedade, passado o
desconcerto inicial, mostra por transparência um sorriso de Deus, que parece
dizer-nos: “É isto o que te convém. Eu te estou tratando como um pai trata o
seu filho”.
AS DIFICULDADES, MESTRAS
DE ESPERANÇA
Resta-nos
considerar brevemente, por último, um quarto benefício das dificuldades, que
não é certamente o menor.
É bem verdade
que as dificuldades – como víamos – são um bom desafio, que nos convida a
ultrapassar os nossos “limites”, mas também é certo que são com freqüência uma
comprovação evidente das nossas “limitações”.
Nem todas as
dificuldades são facilmente superáveis, mesmo havendo a melhor das boas
vontades. É perfeitamente plausível imaginar um leitor que, após ter tentado
sinceramente praticar os conselhos que se recolhem nas páginas anteriores,
venha de asa caída dizer: – Esforcei-me, procurei encarar as dificuldades com
espírito esportivo, mas não estou conseguindo senão sucessos muito parciais. O
ideal das virtudes cristãs é uma montanha, e falta-me fôlego para galgar a
encosta.
Talvez pareça
estranho, mas não hesitaria em dizer que essa experiência das “limitações” e “fracassos”
é altamente positiva. Sem ela, todas as idéias anteriores ficariam incompletas
e, em boa parte, desvirtuadas.
Vamos ver por
quê. Talvez o pior dos enganos em que possa incorrer um cristão seja imaginar
que a sua realização espiritual e moral deve ser obtida exclusivamente “fazendo
força”, como resultado do empenho da sua inteligência e da sua vontade.
Há um
paradoxo da vida cristã que, utilizando uma frase já proverbial, se poderia
resumir desta maneira: devemos esforçar-nos como se tudo dependesse de nós, e
devemos ao mesmo tempo rezar convencidos de que tudo depende de Deus.
Cristo, que
nos incentiva constantemente a dar o melhor de nós mesmos, que nos diz que
devemos conquistar o Reino de Deus à viva força (Mt 11, 12), também nos
diz, sem contradizer-se: Sem mim, nada podeis fazer (Jo 15, 5).
A bondade, a
perfeição cristã, consiste em corresponder generosamente à graça de
Deus. Deus é o artista, o artífice do nosso aperfeiçoamento. Nós somos os seus
colaboradores: ajudantes de Deus, diz São Paulo (1 Cor 3, 9).
Certamente,
devemos empregar-nos a fundo e com o mais sincero empenho por melhorar. Mas
esse esforço pode ser comparado à mão que um alpinista, em equilíbrio precário
numa rocha escarpada, e esticando ao máximo os seus músculos, estende para o
chefe da expedição que, numa posição mais alta e mais firme, o guindará até o
novo patamar.
Esta
comparação, como todas as imagens, é insuficiente para expressar o jogo em que
se unem a graça de Deus e os nossos esforços, mas reflete de algum modo a
verdade. Tudo o que nós fazemos é levantar a nossa mão, mas quem nos eleva até
à meta é a mão – a graça – de Deus, se sabemos agarrar-nos firmemente a ela14.
Só com a
nossa “força”, nada podemos fazer. Neste sentido, as dificuldades que
experimentamos na nossa ascensão espiritual evidenciam que, por nós mesmos,
sozinhos, não somos “capazes”. Mas essa consideração não é um convite ao
desânimo, não é uma simples verificação da nossa pequenez. Pelo contrário, é
como uma janela aberta para a esperança: sozinho, não posso, mas, com Deus,
posso tudo. Tudo posso naquele que me dá forças (Filip 4, 13), essa era
a conclusão de São Paulo, quando se sentia incapaz de vencer as suas
dificuldades (cfr. 2 Cor 12, 7-10).
Costuma-se
dizer que a esperança é a virtude do caminhante. É muito significativo que não
se diga que é a experiência. Esta poderia levar-nos ao desalento e, portanto, a
fazer com que deixássemos de ser “caminhantes”. Fracasso, insuficiência,
falhas: isto é o que a experiência nos mostra a cada passo. A esperança fala
uma outra linguagem: diz-nos que, apesar de todas as nossas limitações e
fracassos, podemos contar sempre com a bondade e o poder infinito de Deus, que
Ele coloca amorosamente à nossa disposição, desde que o procuremos com
confiança. “Todos devem colocar uma esperança bem firme no auxílio de Deus
porque, assim como Ele começou em nós o bom trabalho, assim também o tornará
perfeito e o levará a bom termo, a não ser que não se coopere com a sua graça”15.
Sempre que
nos sintamos, portanto, encurralados, “limitados” pelo peso das dificuldades,
procuremos – sem desistir do esforço – apegar-nos mais a Deus, agarrando
firmemente a sua “mão” mediante a oração e os Sacramentos. Não demoraremos a
experimentar que – com a força poderosa da esperança – nós também poderemos
dizer o que afirmava, cheio de otimismo, o Apóstolo São Paulo: De todas
estas coisas – dificuldades sem conta – saímos mais que vencedores por
Aquele que nos amou... Se Deus é por nós, quem será contra nós? (Rom 8, 37
e 31).
E é assim que
as próprias dificuldades se tornarão trampolim, mais uma vez, para saltar mais
alto. Desta vez, serão o trampolim de Deus.
Em suma – e
para concluir estas reflexões –, é pelo caminho das dificuldades que o cristão
avança até à meta da sua realização. Paradoxalmente, as dificuldades, que
aparecem na vida com o rosto do inimigo, quando encaradas com espírito cristão
revelam-se excelentes amigas, que nos prestam inestimáveis serviços. De modo
que, se entendermos as coisas com a perspectiva da fé, haveremos de terminar
dizendo: “Obrigado, meu Deus, pelas dificuldades que tanto me ajudam”.
NOTAS
(1) De
civitate Dei, I, 8; (2) cfr.
Josemaría Escrivá, Sulco, Quadrante, São Paulo, 1987, ns. 59 e 253; (3)
João Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, Livr. José Olympio Ed., Rio de
Janeiro, 1962, pág. 6;(4) Josemaría Escrivá, Caminho, 7ª ed., Quadrante,
São Paulo, 1989, n. 380; (5) Moralia, 4, 28, 34; cfr. Enchiridium
Asceticum, 4ª ed., Friburgo, 1936, pág. 577; (6) Ennarrationes in
Psalmos, LX, n. 3; (7) Cidadela, Quadrante, São Paulo, 1966, pág.
294; (8) A nossa transformação em Cristo, Aster, Lisboa, 1960, págs. 36
e 40; (9) Caminho, n. 12; (10) Ib., n. 247; (11) Ib., n.
292; (12) Pierre Charles, A oração de toda a hora, Flamboyant, São
Paulo, 1962, pág. 255; (13) Sulco, n. 235; (14) cfr. Josemaría Escrivá, É
Cristo que passa, Quadrante, São Paulo, 1975, n. 21; (15) Concílio de
Trento, Sessão VI, cap. XIII, in Denzinger, Enchiridion Symbolorum,
Friburgo, 1955, n. 806.
ÍNDICE
AS DIFICULDADES DA VIDA. ....................... 3
Obstáculos para o nosso bem?... ........... 4
O ideal e o bem. ........... 5
As dificuldades e a virtude. ........... 7
AS DIFICULDADES SUBJETIVAS ....................... 9
Atitudes
perante a vida... ..... 10
As metas
erradas ..... 11
As metas
baixas ..... 13
A difícil
mediocridade..... ..... 16
As fronteiras
do coração... ..... 17
AS DIFICULDADES OBJETIVAS.. ....................... 20
As
dificuldades firmam-nos no bem.. ..... 21
As tentações
nos experimentam.......... .......... 23
Virtudes e
sentimentos.......... .......... 25
Conhecimento
próprio.......... .......... 27
As
dificuldades fazem-nos crescer.... ..... 29
A recusa de
crescer....... ....... 31
Duas
fraquezas....... ....... 32
A bondade
difícil....... ....... 34
As
dificuldades purificam-nos ..... 36
A luta que
purifica....... ....... 37
Deus intervém....... ....... 39
As dificuldades,
mestras da esperança ..... 41