O diabo
odeia a Cruz
Uma cena de
sconcertante
Já vimos, numa noite fechada, o súbito
clarão de um relâmpago? Num instante, a paisagem emerge das sombras, envolta em
luz azulada, e distinguem-se nitidamente as coisas que a noite deixava ocultas.
É o que poderíamos chamar um choque de luz.
Pois bem, vamos assistir agora a um choque
de luz, potente e assustador como um relâmpago, que foi um dos primeiros
clarões que Cristo projetou sobre o mistério da Cruz.
Caminhava Jesus com os Apóstolos e uma
turba de discípulos, quando pela primeira vez anunciou a sua Paixão, que já
estava próxima: Começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do
homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos sumos sacerdotes e pelos escribas,
fosse morto, mas ressuscitasse depois de três dias. E falava-lhes abertamente
dessas coisas (Mc 8, 31-32).
Esse anúncio deixou perplexos os que o
escutavam. Nunca tinham ouvido Jesus mencionar a Cruz. Até então, seguir Cristo
fora para eles uma aventura empolgante, com multidões que se encantavam com as
palavras do Mestre, que lhe confiavam os seus padecimentos, que eram
favorecidas com milagres espantosos: cegos que viam, leprosos que ficavam
limpos, mortos – como a filha de Jairo – que ressuscitavam...
De súbito, um balde de água fria lhes é despejado
na alma. O que Jesus dizia era incompreensível. Não falara Ele constantemente
do Reino de Deus que vinha instaurar nesta terra? Não mostrara o seu poder
divino sobre as doenças, sobre os demônios, sobre os ventos e as tempestades?
Não reduzira ao silêncio os seus detratores, mostrando uma superioridade divina
sobre eles? Que sentido tinha então anunciar-lhes que tinha de padecer muito,
ser rejeitado, morrer?
O coração de Pedro não agüentou. Simão
Pedro, o discípulo emotivo e espontâneo, o homem de confiança de Jesus, agarrou
o Senhor pelo braço, levou-o para um lado e – diz o Evangelho – começou a
repreendê-lo: Que Deus não o permita, Senhor! Isso não te acontecerá! (Mc
8, 32; Mt 16, 22).
Era o coração a falar pela boca. Pedro não
suportava pensar nem no sofrimento nem na morte do Mestre. Repelia,
horrorizado, a possibilidade de que esses males viessem algum dia a ser
realidade. Mas ainda estavam no ar essas suas palavras ditadas pelo carinho,
quando, de repente, a cena foi rasgada por um raio inesperado: Jesus,
voltando-se para ele, disse-lhe: Para trás, Satanás! Tu és para mim um
escândalo; teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens! (Mt 16,
23)
Ouvimos isso e ficamos desconcertados. Por
mais que queiramos manter um respeito reverente por todas as palavras de
Cristo, não conseguimos evitar a tentação de achar que dessa vez Jesus foi duro
demais, exagerou.
Deixemos passar essa primeira impressão
(nós somos emotivos como Pedro) e procuremos refletir serenamente sobre a cena.
Perceberemos então que as palavras duras de Jesus não são um exagero, mas um
alerta tremendamente urgente e necessário.
Sim, essas palavras fortes de Cristo são
necessárias para que nós não nos desencaminhemos; eu diria que são
especialmente necessárias no nosso mundo atual. Por quê?
A razão é que o veemente protesto de
Pedro, sem ele o saber nem suspeitar, foi diabólico: foi o eco quase perfeito
da terceira tentação com que Satanás assaltara Cristo, no fim dos
quarenta dias de oração e jejum no deserto, quando o Filho de Deus se dispunha
a iniciar a sua pregação. O diabo propusera a Jesus reinar sobre o mundo sem
necessidade de passar pela Cruz: Todos estes reinos te darei se,
prostrando-te diante de mim, me adorares (Mt 4, 9). “Rendendo-te a mim –
vinha a dizer o diabo –, poderás triunfar e reinar sem sofrer”.
A repreensão de Pedro a Jesus era um eco
involuntário dessa voz diabólica. Por isso Cristo reagiu com as mesmas palavras
com que repelira o Inimigo: Para trás, Satanás! (Mt 4, 10 e 16, 23).
Lembremo-nos de que, quando o Filho de
Deus entrou no mundo, o anjo Gabriel anunciou a Maria que o Filho que dela ia
nascer receberia de Deus o trono de seu pai Davi, e que o seu Reino
não teria fim (cfr. Lc 1, 32-33).
Ora, Jesus é Rei – Eu para isso nasci e
vim ao mundo, dirá a Pilatos (Jo 18, 37) –, mas é Rei de um Reino
espiritual, sobrenatural, que não é deste mundo (Jo 18, 36), porque é o
Reino da Graça e da Vida, do Amor e da felicidade eterna na Casa do Pai (Jo
14, 2). Por desígnio da Santíssima Trindade, Cristo vinha conquistar e
instaurar esse Reino, mediante a sua imolação redentora na Cruz. Era com a Cruz
que se ia realizar a nossa salvação, essa salvação que Satanás não podia
suportar.
Pedro, o bom Pedro, na sua ignorância
afetuosa, fazia sem querer o jogo do Inimigo. Jesus tirou-o do engano, com a
rude violência amorosa com que se resgata do mar alguém que se está afogando.
Mas não achemos que este jogo do diabo
acabou. Ainda em vida de Cristo, voltou à carga. São Lucas refere-nos que, após
o fracasso das tentações no deserto, o demônio apartou-se dele até outra
ocasião (Lc 4, 13). Essa outra ocasião foi a hora da Paixão, a
própria hora da Cruz. No Horto de Getsêmani, Jesus teve de lutar no seu íntimo
– numa agonia que o fez suar sangue – porque a sua humanidade tremia perante a
Cruz e sentia a tentação de evitar os sofrimentos indizíveis da Paixão.
No fim desse combate, triunfou o seu amor à vontade do Pai e o seu amor por
nós, o seu anseio de nos redimir lavando os nossos pecados com o seu sangue: Pai!
...Não se faça o que eu quero, mas o que tu queres (Mc 14, 36).
A investida na Paixão, porém, não foi a
última... Nunca o diabo deixará de combater a Cruz. Sempre tentará enganar os
homens com argumentos falaciosos, servindo-se da habilidade de tergiversar que
lhe é própria. Não é à toa que Cristo o qualificou de mentiroso e pai da
mentira (Jo 8, 44).
Hoje, mente talvez mais do que nunca. Dá a
impressão até de que os séculos transcorridos lhe deram experiência e, se é
possível pensar assim, aprendeu a mentir com mais argúcia, agressividade e
aprumo, tanto que às vezes parece – só parece, graças a Deus – que o ouvimos
cantar vitória e gritar: “Por fim consegui banir a Cruz!”
Uma das grandes mentiras atuais do
diabo, no seu combate contra a Cruz, consiste em convencer o mundo de que
felicidade é igual a prazer, consiste em identificar felicidade e prazer,
o que constitui uma das maiores falsidades que se possam imaginar. Com essa
perspectiva, no mundo só existiria um mal, que seria o sofrimento;
só haveria um inimigo a ser combatido com todas as armas da ciência e da
técnica, da psicologia e da dialética: a dor, o sacrifício, a cruz. O novo deus
pagão é o prazer.
Quem conhece um mínimo de História, sabe
que, durante milênios, tanto os mais elevados espíritos pagãos como os cristãos
– no Ocidente e no Oriente – chegaram à certeza de que a autêntica felicidade
só podia encontrar-se na virtude, no bem, na realização do ideal
divino sobre o homem.
Os homens e as mulheres falhavam, pecavam,
cometiam crimes, eram muitas vezes mesquinhos; mas em nenhum momento se
apregoou ou se pensou que o mal residisse no sofrimento ou no
sacrifício; o mal estava, sim, na falta de virtude, na falta de valores, na
mentira, no desregramento, na escravidão da alma às paixões baixas, em suma, no
mal moral, no pecado.
Todos os heróis admirados e propostos como
modelo à juventude eram homens e mulheres capazes de grandes sacrifícios, de
generosas renúncias, de heróicos sofrimentos por uma causa, por um ideal que se
identificava sempre com a verdade e o bem, e nunca com a
auto-satisfação hedonista ou o interesse egoísta. Este era o comum denominador
dos grandes personagens bíblicos – Moisés, Davi, Judite, Ester... –, dos heróis
pagãos – Aquiles, Penélope, Enéias, Dido... – e dos heróis cristãos, quer se
tratasse de mártires, de virgens enamoradas de Deus, de grandes servidores dos
pobres; quer de modelos de cavaleiro cristão, como o rei São Luís da França ou
El-Rei Dom Sebastião; ou os heróis lendários como Sir Lancelot, Tirant lo Blanc
e o louco e genial Dom Quixote de la Mancha. O espelho da grandeza era a
virtude. E a virtude não só tolerava, mas exigia o sofrimento heróico,
paciente, e o sacrifício desinteressado, até chegar à entrega – sem um arrepio
– da própria vida.
Agora, essa página de milênios parece
estar sendo rasgada em muitos ambientes, para grande satisfação de Satanás. Na
chamada modernidade, o pai da mentira – pelos seus mil porta-vozes –
pontifica na mídia, na televisão, na Internet, no cinema, nas revistas, nas
letras das canções, nas aulas dos colégios, cursinhos e faculdades, nos
consultórios psicológicos, psiquiátricos ou astrológicos, e a toda a hora diz,
proclama, prega, como quem define um dogma de fé incontrovertível: “Abaixo a
cruz, apaguemos a cruz, deletemos o sofrimento, o sacrifício sem gosto,
desprezemos o sacrifício sem o prazer da ambição, do poder, da posse, da
vaidade corporal, da vaidade profissional, da vaidade esportiva. Sejamos
felizes, meus senhores, e convençamo-nos de que a felicidade não está nas
balelas do bem nem da virtude – isso já era! –, mas no
Prazer, que é o nosso único e verdadeiro bem, o nosso único e verdadeiro deus”.
Com estes parâmetros começa infelizmente
muitas vezes a formação de muitas crianças, que os pais não se atrevem a
contrariar (comem o que querem, assistem aos programas de tv que querem,
navegam na Internet como querem, falam grosso a quem querem, vestem como
querem, sujam o que querem...); que pais e professores não ousam limitar,
disciplinar, por medo de que sofram e fiquem com raiva ou traumatizadas.
Assim crescem muitos adolescentes, sem um
mínimo de ordem, de autodomínio, de capacidade de sacrifício e de renúncia, sem
condições de fazer algo de que não gostem ou que não sintam, pois,
como todos dizem, isso não seria autêntico. Assim se abalançam a um sexo sem
amor nem finalidade, desumanizado e bestial, em que o prazer é a única regra, e
já não há respeito, nem ideal, nem amor, nem limites para as mais aberrantes e
degradantes experiências.
E como a experiência do prazer é ávida e
insaciável, nunca se chega ao limite. É preciso tentar também as drogas,
mergulhar no álcool, sentir a embriaguez de jogos suicidas: racha, roleta-russa,
etc. A vida egoísta, sem a finalidade de um bem, acaba devorando-se a si
mesma.
Chega depois a idade adulta, e se
manifestam então um homem ou uma mulher que, mesmo quando estão
profissionalmente preparados, se revelam incapazes de assumir o sacrifício e de
enfrentar a cruz que é necessária para edificar uma família, para ter e educar
filhos, para ser fiéis, para ser honestos no trabalho, para compreender e
suportar com paciência os defeitos dos colegas... Chegou a idade adulta e, como
no conto de fadas, um dedo de criança invisível aponta para eles e diz: O rei
está nu! Está nu, está despreparado, carente de virtudes, de amor à verdade
e ao bem, de algo que não seja o prazer e a satisfação autista do seu eu.
Mas é justamente nesta cultura sem Cruz
que se dá, em proporções nunca vistas na História, o máximo índice per
capita de tristeza, de solidão, de tédio, de mau humor, de necessidade de
fuga, de escravidão aos vícios e paixões, de violência, de desrespeito ao
próximo, de vazio.
“A gente – diagnosticava mons. Escrivá em
São Paulo, em 1974 – está triste. Fazem muito barulho, cantam, dançam, gritam –
mas soluçam. No fundo do coração, só têm lágrimas: não são felizes, são
desgraçados”.
No mesmo sentido, o Papa João Paulo II
referia-se incisivamente a essa situação numa alocução de 18 de junho de 1991:
“Não é difícil, mesmo para um observador que fique apenas no nível da
psicologia e da experiência, descobrir que a degradação no campo do prazer e do
amor é proporcional ao vazio que deixam no homem as alegrias que enganam e
defraudam, procuradas naquilo que São Paulo chamava as «obras da carne»: Fornicação,
impureza, libertinagem [...], bebedeiras, orgias e coisas semelhantes
(Gál 5, 19.21). A estas alegrias falsas podem acrescentar-se, e às vezes vão
juntas, as que se procuram na posse e no uso desenfreado da riqueza, no
exibicionismo do luxo e na ambição de poder”.
Contemplando as conseqüências da rejeição
da Cruz, entende-se melhor o que Cristo acrescentou, depois de repelir a
sugestão bem-intencionada de Pedro: Tu és para mim um escândalo; teus
pensamentos não são de Deus, mas dos homens (Mt 16, 23).
Conforme a expressão original do
Evangelho, o que nesta frase se traduz por pensamento significaria
propriamente o sentido profundo das coisas, a sabedoria no
sentido bíblico. Por isso, é como se Cristo tivesse dito a Pedro: “Não
captas, não tens interiormente o saber e o sabor das coisas de Deus, mas das
dos homens”, só percebes as coisas mundanas.
É uma constante, na palavra de Deus no
Novo Testamento, contrapor duas sabedorias: a humana ou carnal, que procede das
más paixões instigadas pelo Inimigo (cf. Tg 3, 15); e a de Deus, que procede do
Espírito Santo. Se há um ponto em que estas duas sabedorias se separam mais
claramente, esse ponto é a Cruz.
São Paulo expressa-o com nitidez: A
linguagem da Cruz é loucura para os que se perdem, mas, para os que se salvam,
é uma força divina [...]. Os judeus pedem milagres, os gregos reclamam a
sabedoria; mas nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus e
loucura para os pagãos; mas para os eleitos – quer judeus quer gregos –, é
força de Deus e sabedoria de Deus (1Cor 1,18.22-25).
O cristão autêntico, o que descobriu e
experimentou a alegria de encontrar Cristo e se apaixonar por Ele, sabe
colocar, como Jesus, o amor acima do prazer. E, como não existe amor sem doação
– sem sacrifício, sem Cruz –, sabe que só pelo caminho generoso da Cruz,
seguindo os passos de Cristo, poderá achar a verdadeira felicidade. Mas isso
exigirá uma outra meditação...
(Adaptação de um trecho do livro de F. Faus: A sabedoria da Cruz)