São Pedro: O chefe humano
da Igreja divina
Por
Georges Chevrot
E eu te darei as chaves do reino dos céus. E tudo o
que atares sobre a terra será atado também nos céus; e tudo o que desatares
sobre a terra será desatado também nos céus.(Mt 16, 19).
Deus
quer elevar a humanidade até Ele. O seu próprio Filho, ao entrar na raça dos
homens, uniu numa só pessoa a divindade infinita e a nossa natureza humana. O
Filho de Deus fez-se homem para fazer de nós, criaturas humanas, filhos de
Deus. E a sua Encarnação terá uma continuidade eterna: a Igreja, por cujo
intermédio entramos na família divina.
A
Igreja faz de todos nós membros de um corpo de que Jesus Cristo é a cabeça. O
Espírito Santo infunde nela a vida divina e liga cada uma das nossas almas a
Jesus Cristo. Só Deus pode, na verdade, ser o autor da nossa divinização. São
Paulo, a propósito do matrimônio, fala-nos do amor de Jesus Cristo pela sua
Igreja: Cristo amou a Igreja e por ela se entregou a si mesmo, para
santificá-la, purificando-a no batismo da água pela palavra da vida, a fim de
apresentá-la a si mesmo, gloriosa, sem mancha nem ruga ou coisa semelhante, mas
santa e imaculada (Ef 5, 25-27).
Para
esta obra de santificação, Cristo estabeleceu na sua Igreja o sacerdócio,
transmissor da sua própria vida divina. Mas o sacerdócio na Igreja necessita de
uma autoridade reguladora, de um poder visível que coordene e dirija a
atividade dos Apóstolos, que mantenha em toda a sua pureza os ensinamentos do
Mestre e que assegure a unidade entre todos os membros.
Cristo
não quis que esta autoridade fosse múltipla; assentaria num só homem: Pedro.
Jesus continua como o único Mestre do reino que Deus estabeleceu sobre a terra,
mas Pedro será o único intendente, o mordomo a quem o Mestre entrega todas as
chaves. As medidas que este tomar na terra serão ratificadas no Céu, porque a
sua autoridade é a autoridade do próprio Cristo. Jesus confere a Pedro muito
mais do que um primado de honra sobre os outros Apóstolos; investe-o de uma
autoridade efetiva sobre toda a Igreja.
E
que autoridade! Nunca ninguém foi honrado com semelhante dignidade. O poder de
Pedro ultrapassa o de todos os soberanos. Um monarca promulga leis e estabelece
impostos, um déspota pode arrogar-se o direito de vida e morte sobre os seus
súditos. O poder de Pedro, porém, é muito maior, porque se exerce sobre aquilo
que escapa às mais absolutas e tirânicas autoridades humanas. Pedro tem poder
sobre as inteligências, sobre as consciências, sobre as almas; atinge o nosso
íntimo, e só ele pode fixar os limites desse poder sem equivalente.
Pedro
dir-nos-á se somos ou não fiéis à doutrina e à vontade de Cristo, e o nosso
juízo deverá inclinar-se diante do seu. Pedro é responsável pela nossa fé, pela
nossa santificação e pela nossa eternidade. É ele o único juiz das decisões que
as suas responsabilidades o obrigam a tomar.
Não
devemos pensar que esta interpretação dos poderes de Pedro consagra apenas um
estado de coisas derivado do exercício secular de uma autoridade que teria
evoluído no sentido de uma centralização e de um absolutismo progressivos. Os
poderes do Sumo Pontífice não são, no nosso tempo, mais extensos que os de
Pedro nos primeiros tempos da Igreja.
É
Pedro quem faz eleger um sucessor do Apóstolo prevaricador; é Pedro quem fala e
responde em nome de todos. Um cristão tentou enganá-lo, e eis o que ele
responde: Ananias, por que Satanás se apoderou do teu coração para que
mentisses ao Espírito Santo? E insiste: Não mentiste aos homens, mas a
Deus (At 5, 3-4). E ali mesmo Ananias caiu por terra e expirou. Mentir a
Pedro é mentir a Deus.
É
Pedro quem, a despeito da oposição dos primeiros fiéis de Jerusalém, decide
levar o Evangelho aos pagãos. Em Antioquia, hesita por um instante, temeroso de
que a sua atitude acolhedora para com os pagãos convertidos possa perturbar a
fé dos cristãos procedentes do judaísmo. Paulo censurá-lo-á por essa fraqueza,
mas sem de maneira nenhuma contestar-lhe o direito de adotar sucessivamente
duas soluções diversas. Mais ainda, para se impor aos que duvidavam de que o
antigo inimigo da Igreja pregava o verdadeiro Evangelho, Paulo faz-lhes saber
que, antes de mais nada, tinha subido a Jerusalém para conhecer Cefas,
permanecendo quinze dias com ele. E é Pedro ainda que preside ao primeiro
Concilio celebrado em Jerusalém.
Dezenove
séculos em nada mudaram as prescrições de Cristo. Os destinos da sua Igreja
assentam sobre um homem, sobre um único homem.
A
que riscos não se expunha o Filho de Deus? Assim pode raciocinar a nossa curta
prudência humana, mas, na realidade, a imprudência de Jesus é toda ela
sabedoria. A última ordem do Salvador foi um comovente apelo à unidade: Que
sejam um! Se Ele tivesse colocado à frente dos seus discípulos várias
autoridades, poderiam produzir-se divergências entre elas, mesmo pequenas, e
poderia haver um perigo muito maior de se introduzirem na Igreja grupos,
partidos e por fim divisões. Cristo permanece como Chefe eterno da Igreja, e a
sua autoridade não será dividida porque Ele a delegou unicamente em Pedro.
Escolheu um homem, um único homem, e um homem sujeito às fraquezas humanas,
como Pedro o demonstrou. Quando Jesus o escolhe, sabe que Pedro sucumbirá no
decorrer da Paixão; e na véspera do dia em que o irá negar, o Mestre diz-lhe
que orou por ele, para que a sua fé não desfalecesse, acrescentando: E tu,
uma vez convertido, confirma os teus irmãos (Lc 22, 32).
A
queda momentânea de Pedro, prevista por Cristo, prova-nos que, ao dar à sua
Igreja um fundamento monárquico, Jesus mediu todos os riscos dessa decisão.
Sabia que nem todos os sucessores de Pedro seriam santos, que alguns seriam
vítimas da ambição, da cobiça ou de paixões ainda menos confessáveis. Embora
sintamos tristeza perante a indignidade de um pequeno número de maus Papas, é
um fato historicamente confirmado que nenhum deles foi arrastado - pela
desordem da sua vida privada - a relaxar o menor preceito da lei moral, que
nenhum deles tentou que lhe perdoassem os seus erros alterando o depósito da
verdade dogmática.
Nos
fins do século XIV, a anarquia assolava a Igreja. Depois de uma eleição
controvertida, os anti-papas levantaram-se contra os Papas. A cristandade não
sabia a quem obedecer, e os próprios santos se sentiam desorientados: Santa
Catarina de Sena era partidária de Roma; São Vicente Ferrer, de Avinhão. Papas
e anti-papas apelavam para o poder dos reis, que se riam deles. Terrível época,
que dava razão às cruéis palavras de Lacordaire: "A História é o longo
relato das desonras do homem". “Um reino temporal – escreve a este
respeito um autor protestante – teria sucumbido, mas a idéia do Papado era tão
indestrutível que essa cisão só conseguiu patentear a sua indivisibilidade” 1.
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(1)
F. Mourret, La papauté, pág. 112.
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Contudo,
poderão as falhas de alguns fazer-nos esquecer a virtude, a ciência e o zelo de
tantos outros? Aos pés da estátua que vai talhando de uma madeira nobre, o
escultor deixa cair fragmentos perdidos. Não podemos remexer esses restos e
censurá-lo por esses desperdícios inúteis, em vez de admirar a obra prima que
criou.
Um
homem, um só homem, ainda que seja santo, nunca conseguirá prescindir da sua
personalidade: as suas opiniões estarão influenciadas pela sua maneira de ser e
o seu modo de governar dependerá também do seu temperamento. Este inconveniente
da unidade de comando não escapou ao Senhor. É certo que cada Papa, muito
embora venere as tradições, dirige a Igreja de acordo com determinado espírito,
e também que cada pontificado tem a sua ou as suas linhas-mestras, tornando-se
possível observar orientações diversas de um pontificado para outro. Diferenças
sim, divergências não, e menos ainda contradições.
O
inconveniente que poderia oferecer a ação excessivamente pessoal de um chefe
único, encontra-se magnificamente compensado pela sucessão de pontífices que
não se assemelham. Um será mais audaz, outro mais discreto; este parecerá
especialmente preocupado em conquistar o mundo para o cristianismo, aquele
insistirá sobretudo na formação interior dos fiéis; e assim se completam
maravilhosamente, tal como os movimentos alternados de sístole e diástole
regulam a circulação do sangue em todo o organismo.
Quanto
à questão de saber se, por muito diferentes que sejam uns dos outros, cada um é
o representante autêntico da autoridade de Cristo, a História encarrega-se de
nos responder que cada Papa chega no tempo oportuno e que o seu gênio se
encontra em providencial sintonia com as necessidades do momento.
O
livro dos Atos dos Apóstolos conta-nos que a sombra de Pedro curava os doentes
reunidos à sua passagem, mas o seu corpo não teria projetado sombra alguma se,
por cima dele, não tivesse brilhado o sol de Deus. Assim, os Papas são
unicamente, mas de um modo efetivo, a sombra de Cristo. Seja qual for o nome
que adotem - João, Pio ou Bento -, por detrás dele, do Chefe da Igreja, nós
vemos sempre a luz de Deus.
A
instituição divina do Papado é uma verdade por demais certa para que possamos
descurar os nossos deveres de católicos para com aquele a quem chamamos o Santo
Padre.
Em
primeiro lugar, é-lhe devido respeito. Pelo fato de vermos nele Cristo, que ele
representa, não podemos ceder à tentação, demasiado fácil, de contrapor um Papa
a outro, para depositar a nossa confiança naquele cujos atos estejam mais de
acordo com as nossas tendências pessoais. Não podemos ser daqueles que lamentam
o Papa de ontem ou esperam o de amanhã para se dispensarem de obedecer ao de
hoje. Quando se lêem os textos do cerimonial da coroação dos Pontífices, é
possível observar que ninguém confere ao eleito pelo Conclave os poderes da sua
dignidade. O sucessor de Pedro recebe esses poderes diretamente de Cristo.
Quando falamos do Sumo Pontífice, devemos banir do nosso vocabulário termos
provenientes das assembléias parlamentares ou das polêmicas jornalísticas, e
não devemos deixar aos estranhos à nossa fé o cuidado de nos revelarem o
prestígio que o Chefe da cristandade possui no mundo.
O
respeito com que falarmos do Papa inclinar-nos-á a obedecer-lhe mais
perfeitamente. É claro que nunca nos poderia passar pela cabeça discutir as
verdades abrangidas pelo seu magistério infalível ou as ordens emanadas da sua
soberana jurisdição, posto que é através dessa submissão que se pertence à
Igreja. Mas, como verdadeiros filhos, devemos também escutar atentamente o
menor dos conselhos dos Pontífices, esforçando-nos por levá-los lealmente à
prática.
Pode
suceder que uma ou outra diretriz pontifícia se oponha aos hábitos do nosso
espírito, a certas facilidades morais muito estendidas, sobretudo em questões
de moral conjugal, ou exija o sacrifício de interesses materiais que julgamos
bem fundamentados. Nesse caso, em vez de pretender que detemos pessoalmente a
verdade, não será muito mais prudente que comecemos por tentar compreender bem
o pensamento daquele que faz junto de nós as vezes de Cristo? O Papa vê de mais
alto e mais longe do que nós. É por isso que a sua palavra tem um alcance que
ultrapassa a nossa visão particular; e determinadas normas que nos podem
surpreender ou mesmo chocar correspondem, na realidade, não só aos problemas de
hoje como às dificuldades de amanhã.
Em todo o
caso, nunca devemos rebaixar-nos ao ponto de atribuir ao Chefe da Igreja
intenções desfavoráveis a um ou outro grupo ou destinadas a favorecer uma nação
ou uma classe social determinada. Seria fazer-lhe uma grave injúria.
Imaginemos
por um instante os problemas que se põem à consciência do Soberano Pontífice.
Ele sabe que a menor palavra que pronuncie dará a volta ao mundo em poucas
horas: não pesará, pois, cuidadosamente cada uma dessas palavras, evitando tudo
quanto possa dar lugar a confusão, suavizando - mesmo que alguns considerem uma
atenuação excessiva - qualquer expressão que, compreendida inexatamente,
poderia fazer mal em vez de trazer luz? Não é apenas a sua autoridade que o
Papa compromete ao ditar uma ordem ou uma proibição. Ele sabe que a sua vontade
será executada por milhões de fiéis, a quem uma ordem pouco oportuna pode
intranqüilizar.
É
concebível que esqueça a sua responsabilidade? Ainda que fosse um homem como
qualquer um de nós, só falaria depois de ter consultado e perguntado, ouvido
todas as opiniões e estudado pessoalmente o assunto. Quem de entre nós se
atreveria a elevar a voz se estivéssemos nessas condições? Não preferiríamos
observar um discreto silêncio?
O Papa só
fala porque tem o dever de fazê-lo, um dever imperioso inerente ao seu cargo.
E, por outro lado, não se limita a esses longos diálogos com a sua consciência.
Dialoga muito mais tempo com o Senhor, numa oração em que toda a sua alma se
entrega e apenas deseja entregar-se à ação do Espírito Santo. O valor da sua
palavra, para os que lhe obedecem, pode representar talvez a sua salvação
eterna. Quem poderia, pois, supor que fala irrefletidamente ou sob a influência
de considerações humanas? É de joelhos que medita a doutrina das suas
Enciclicas; e a condenação que, por vezes, é obrigado a pronunciar não veria
nunca a luz do dia se ele não tivesse a certeza de que deve falar em nome de
Cristo.
Estou
certo de que não haveria uma ou outra voz discordante entre os católicos dos
nossos dias se se dispusessem a refletir no simples fato de que o Papa tem uma
consciência, uma consciência de homem honesto, uma consciência de cristão e uma
consciência de chefe, de representante de Cristo junto de todos os cristãos.
Para
compreendermos que o Soberano Pontífice tem o sentido das responsabilidades que
lhe incumbem, devemos considerar a insistência com que nos pede o cumprimento
do terceiro dever que temos a seu respeito: o de orar com ele e por ele. Não se
celebra uma só missa sem que mencionemos o seu nome. Com uma admirável
generosidade, concede-nos indulgências para que oremos pelas suas intenções. E
não devemos ver nisso uma recomendação supérflua, mas a necessidade que tem de
que o ajudemos com as nossas orações.
Lembremo-nos
da tocante cena de São Pedro na cadeia. Depois de alguns dias em que pregou
livremente, Herodes Agripa manda prendê-lo, decidido a condená-lo à morte
depois da festa dos Ázimos. Um anjo faz cair milagrosamente as correntes que o
prendem e leva-o para fora da prisão. Pedro, já livre, reflete e não se atreve
a procurar Tiago em Jerusalém, porque seria muito fácil voltar a ser preso.
Dirige-se então para casa de uma humilde mulher, a mãe do futuro evangelista
Marcos. Quando chega, encontra a casa cheia de cristãos que, sem descanso,
oravam a Deus por ele desde o primeiro dia da sua prisão.
A devoção pelo Papa remonta, assim, aos primeiros
tempos da Igreja. Devemos conservá-la cuidadosamente, porque é própria das
almas santas. Para governar a Igreja, Pedro tem necessidade de dois auxílios:
da assistência infalível de Cristo e da humilde oração de todos os cristãos.
Georges Chevrot
Nasceu em 1879 em Paris, onde faleceu a 4 de fevereiro de 1958.
Ordenado sacerdote em 1903, exerceu diversos ministérios pastorais na diocese
até ser nomeado pároco de São Francisco Xavier, onde permaneceu até a morte.
Homem de profunda vida interior, observador agudo e inteligente, sacerdote
inteiramente dedicado ao seu ministério, recusou todos os títulos e honrarais
por humildade; mas, pelo seus brilhantes dotes de orador, foi convidado por
diversos bispos a dirigir retiros diocesanos em toda a França e nomeado pelo
Cardeal Verdier pregador da catedral de Notre-Dame. Dentre as suas obras
publicadas em português, contam-se Simão Pedro, O Sermão da Montanha, Em
segredo e As pequenas virtudes do lar.
Fonte: Simão
Pedro, Quadrante, 1990. Pág. 74-81.
Tradução: Quadrante
Link: http://www.quadrante.com.br/