PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA
PREFÁCIO DO CARDEAL JOSEPH RATZINGER
AO DOCUMENTO
«A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA NA IGREJA»
O estudo da Bíblia é como a alma da
Teologia, assim diz o Vaticano II referindo-se a uma palavra do Papa Leão XIII
(DV 24). Este estudo jamais chega ao fim; cada época deverá de um modo
novo e próprio, procurar compreender os Livros Sagrados. O aparecimento do
método histórico-crítico inaugurou uma nova época na história da interpretação
bíblica. Com este método surgiram novas possibilidades de compreender o texto
bíblico em sua originalidade. Como tudo o que é humano contém também este
método, ao lado de suas possibilidades positivas, certos perigos: a busca do
sentido original pode levar a se reter completamente a Palavra no passado e a não
permitir que seja percebida em sua atualidade. Com isto pode deixar somente a
dimensão humana da Palavra aparecer como real, enquanto o autor mesmo, Deus,
encontra-se fora do alcance, por se tratar de um método que foi elaborado
precisamente para a compreensão das realidades humanas. O emprego de um método
« profano » na Bíblia deveria provocar debates.
Tudo o que ajuda um melhor
conhecimento da verdade e uma disciplina das próprias representações é útil e
valioso para a Teologia. Neste sentido deve este método encontrar acolhida no
trabalho teológico. Tudo o que limita nosso horizonte e nos impede de olhar e
escutar o que está para além do meramente humano deve ser rompido. Deste modo o
aparecimento do método histórico-crítico pôs igualmente em movimento uma
disputa em torno de seu alcance e de sua correta forma, disputa esta que de
modo algum está encerrada.
Nesta disputa o Magistério da Igreja
Católica, várias vezes já tomou posição através de importantes documentos.
Primeiramente o Papa Leão XIII, no dia 18 de novembro de 1893, com a encíclica Providentissimus
Deus, assinalou algumas indicações no mapa da exegese. Se numa época em que
surgia um liberalismo extremamente seguro de si e consequentemente dogmático,
Leão XIII se exprimiu, sobretudo de modo crítico, sem excluir, contudo o que
havia de positivo nas novas possibilidades, cinquenta anos mais tarde graças ao
fecundo trabalho de grandes exegetas católicos, o Papa Pio XII em sua encíclica
Divino afflante Spiritu, de 30 de
setembro de 1943, pôde sobretudo encorajar de modo positivo o uso de métodos
modernos para tornar fecunda a compreensão da Bíblia. A Constituição do
Concílio Vaticano II sobre a divina revelação, Dei Verbum, de 18 de novembro de 1965,
aproveita tudo isto; este documento nos presenteou com uma síntese, que
permanece determinante, constituída pelas intuições perenes da teologia dos
Santos Padres e pelos novos conhecimentos metodológicos modernos. Neste meio
tempo o espectro dos métodos do trabalho exegético se ampliou de um modo que
não se poderia prever trinta anos atrás. Aparecem novos métodos e novas vias de
acesso que vão do estruturalismo até a exegese materialista, psicanalista,
liberacionista. Por outro lado existem também novas tentativas em curso para
recuperar novamente os métodos da exegese patrística e para abrir formas
renovadas de uma interpretação espiritual da Escritura. Deste modo, cem anos
depois da Providentissimus Deus e cinquenta anos depois da Divino afflante Spiritu, a Pontifícia
Comissão Bíblica considera seu dever buscar um posicionamento da exegese
católica na presente situação.
A Pontifícia Comissão Bíblica, depois
de ocorrida sua reformulação na linha do Vaticano II, não é um órgão do
Magistério mas uma comissão de peritos. Seus membros são igualmente
responsáveis diante da ciência e diante da Igreja quando se posicionam, como
exegetas cristãos, com relação aos problemas essenciais da interpretação da
Escritura, sabendo que nesta tarefa gozam da confiança do Magistério. Foi assim
que surgiu o presente documento. Ele fornece uma fundamentada visão geral do
panorama dos métodos atuais e oferece assim aos que procuravam uma orientação
sobre as possibilidades e limites destes caminhos.
Pressupondo tudo isto, o texto põe a
questão de como pode ser então conhecido o sentido da Escritura. Este sentido
no qual se interpenetram palavra humana e Palavra Divina, a singularidade histórica
do acontecimento e a perenidade da Palavra eterna, que é contemporânea a
qualquer época. A palavra bíblica provém de um passado real, mas não somente do
passado, porém igualmente da eternidade de Deus. Ela nos introduz na eternidade
divina, mas de novo pelo caminho do tempo, ao qual pertencem o passado, o
presente e o futuro. Creio que o documento é realmente útil para a grande
questão que gira em torno da via correta para a compreensão da Sagrada
Escritura, sendo que fornece elementos que vão além da mesma. Ele retoma a
linha das encíclicas de 1893 e 1943, e as desenvolve de modo fecundo.
Desejo agradecer aos membros da
Comissão Bíblica pelo trabalho paciente e freqüentemente penoso, através do
qual gradualmente este texto se constituiu. Desejo ao documento uma vasta
difusão, para que seja uma contribuição eficaz na busca de uma mais profunda
assimilação da Palavra de Deus na Sagrada Escritura.
Roma, na festa de São Mateus Evangelista 1993.
JOSEPH
Cardeal RATZINGER